9 de ago. de 2009

Drogas ilícitas: por baixo e por cima...


por George Felipe de Lima Dantas e
Celso Moreira Ferro Júnior
7 de agosto de 2009

Referência:
Estudo 'Tráfico de Drogas e Constituição'/Faculdade Nacional de Direito - UFRJ/Faculdade de Direito da UnB.
Noticiado por 'UOL Notícias' e assinado por Haroldo Ceravolo Sereza.
Fonte:

http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/08/05/ult5772u4870.jhtm

Parece que o estudo -- 'Tráfico de Drogas e Constituição'/Faculdade Nacional de Direito - UFRJ/Faculdade de Direito da UnB -- nos termos apresentados na matéria veiculada pelo UOL, traz uma conclusão bastante lógica da dinâmica do narcotráfico e, talvez, também de vários outros 'negócios', ainda que a maioria dos 'negócios em geral' seja de desdobramento diferenciado do narcotráfico em relação aos efeitos sobre o chamado 'tecido social'. O narcotráfico é um 'negócio ilícito', mas certamente um negócio... Como em várias outras modalidades de negócio, o volume do que é comercializado vai sendo diluído desde suas unidades de manufatura central até as extremidades dos vetores mais periféricos da respectiva rede de produção, comercialização e consumo final ‘retalhista’.

Uma determinada mega-indústria lícita "X' é uma prova benigna disso, já que ela é composta de uma rede mundial de distribuição e consumo de cosméticos que deve chegar a limites mínimos comercializados, talvez até mesmo de uma única unidade mensal por um de seus vendedores retalhistas. Isso pode parecer pouco significativo em termos de volume de venda e consumo naquele 'ponto de venda', mas são milhares deles... Não consta, porém, que a Secretaria da Receita Federal (SRF), Departamento de Polícia Federal (DPF), tampouco as polícias locais (PCs), estejam ocupados com uma eventual ilicitude perpetrada pelas mulheres e adolescentes brasileiras, certamente honestas (e ocupados com a beleza!), e que fazem parte da rede de distribuição e consumo dessa indústria 'X'... - Por que será? - Certamente que não pelo ônus social que tal atividade cause, já que, muito pelo contrário, não deve produzir ônus algum, mas sim bônus econômicos e sociais ao possibilitar a geração de alguma renda extra, complementar, mormente considerando estratos menos abastados da população do país.

Já a mega-indústria da cocaína & de outras drogas ilícitas, por exemplo, gera produtos pouco ou nada explícitos mercadologicamente, mas de conseqüências políticas, sociais e econômicas certamente devastadoras quanto aos efeitos da comercialização e consumo de tais produtos, ao contrário do que acontece com o comércio de fragrâncias, diferentes tipos de maquilagem e de esmalte de unha resultantes do negócio anteriormente referido. Mas igual que em outros 'negócios', o narcotráfico também tem suas manufaturas centrais e redes de distribuição que vão sendo diluídas em quantidade do efetivo empenhado na comercialização e das quantidades comercializadas e consumidas, da periferia para o centro, no que concerne consumo final, distribuição e produção. Um grande traficante da capital do país (Brasília), por exemplo, pode estar apenas em oitavo ou nono lugar, na sua respectiva rede criminosa transnacional.

A grande diferença desse tipo de comercio -- o narcotráfico, na maioria absoluta das vezes 'artesanal e quase sempre invisível' ao chegar às ruas, é que nele são transacionados 'produtos' até limites quantitativamente mínimos, produtos esses 'não tão agradáveis socialmente', à semelhança de outros produtos derivados de um 'negócio lícito', como é o caso das bebidas licitamente comercializadas contendo álcool etílico. Em ambos os casos, o dano produzido, em termos de quantidade consumida, é impossível de ser precisamente quantificado em qualquer sentido tangível ou intangível considerado. Quantas doses de aguardente são necessárias para que alguém chegue ao seu próprio limiar de lucidez (ou da falta dela...), para cometer um homicídio doloso ou, em outra expressão desse mesmo delito, perpetrar um homicídio culposo de trânsito?

Não seria possível quantificar os efeitos devastadores do fenômeno da intoxicação pelas drogas ilícitas para uma família, comunidade e órgãos do sistema de saúde que assistem e tratam de um drogadicto de 20 anos de hábito. Impossível quantificar a diferença para melhor ou pior, 20 anos antes, das poucas ou muitas gramas de maconha ou pó de cloridrato de cocaína consumidos. Isso considerando os hoje multiplamente enfermos pelo efeito deletério da drogadicção. Talvez tenha bastado uma única dose inicial, ínfima que tenha sido, para a tragédia que ira suceder ao longo e ao final de várias décadas...

Segundo levantamento estatístico realizado pela Polícia Civil do Distrito Federal no primeiro semestre de 2007, do total de crimes de homicídio ocorridos no Distrito Federal, 23,4% foi motivado por drogas, relacionados ao narcotráfico, uso de drogas ou acerto de contas em função do narcotráfico. Esta seria a motivação modal dentre todas outras motivações de homicídios esclarecidos, nomeadamente, por motivo fútil, vingança e alcoolismo.

A repressão do narcotráfico, porquanto mega-negócio ilícito de implicações perversas sobre a saúde humana propriamente dita e a 'saúde social' alegoricamente, é um grave problema de segurança pública e justiça criminal em geral. - Como diferenciar a variável 'quantidade' traficada em tal contexto? -O problema tem várias dimensões de análise e resolução em prol da sua prevenção e repressão. Uma delas é a cessação 'de fato' do 'negócio', e que pode ser atingida originalmente pela erradicação dos seus insumos e/ou pela destruição das suas respectivas 'instalações fabris'. Mas será menos justo e necessário fazer cessar, na impossibilidade da ‘solução final’ (acima), a ação de seus 'vetores' de médio, pequeno e até mesmo porte mínimo? - Muitos são os que acreditam que sim - O estudo parece apontar que não, de alguma forma...

O cianeto ou cianureto de potássio, composto químico hemotóxico altamente perigoso, tem sua dose letal em quantidade não superior a um único dígito em gramas. Como dimensionar a 'letalidade física e social' de substâncias como o cloridrato de cocaína (apresentado ‘puro’ em pó, em pasta -- merla ou em cristais -- crack) ou do tetrahidrocabinol (do haxixe até a popular maconha propriamente dita)? - O que de menos ou mais ilícito representaria o fato do réu que transportou e utilizou o cianeto ou cianureto de potássio, para utilização por outrem, haver transportado quantidades quantificáveis em um ou dois dígitos em gramas?

O estudo citado também aponta que "Esse e outros dados da pesquisa indicam que a maioria dos condenados por tráfico não fazem parte do crime organizado". - Ora, e o que é 'crime organizado'? – Seja lá o que queira dizer a expressão ‘crime organizado’, é bem sabido pelos especialistas da área de justiça criminal do mundo inteiro, que supostos ‘inocentes usuários’, em verdade, fazem parte de uma ‘ponta terceirizada’ da mega-indústria do narcotráfico, tenham consciência disso ou não.

Bojan Dobovsek, em pronunciamento realizado em 1996 no College of Police and Security Studies, na Eslovênia (antiga Iugoslávia), dentre outros pronunciamentos similares de pesquisadores do ramo, já apontava àquela época, portanto mais de uma década atrás, a dificuldade em definir ‘crime organizado’. Ainda assim, ele busca aclarar a questão.

"Não existe uma definição genericamente aceita do que seja ‘crime organizado’, função principalmente do rápido desenvolvimento e mudança nas formas como ele se apresenta. O fato dele caracteristicamente apresentar um alto nível de organização profissional, bem como meios financeiros praticamente ilimitados, faz com que a situação nessa área esteja constantemente em agravamento. Os lucros de uma suposta tipologia delitiva do gênero representam um perigo crescente para o Estado e a Sociedade, já que esses mesmos lucros são investidos, por um lado, em negócios totalmente legais -- com a chamada 'lavagem de dinheiro' -- enquanto pelo outro, os mesmos lucros representam um enorme potencial de corrupção (tradução livre e adaptação dos autores deste artigo).

A matéria do UOL também cita que "O levantamento mostra, por exemplo, que, entre os condenados por posse de maconha pelas varas estaduais do Rio, apenas 1,7% portavam mais de 100 Kg da droga, enquanto 50% portavam até 100 g."

É possível correlacionar 'de maneira justa e razoável' a quantidade de droga e a qualidade do dano social decorrente da produção, comercialização e/ou posse e uso/abuso de substâncias ilícitas? - Existem realmente parâmetros de 'significação social', ao longo do tempo e do espaço, capazes de permitir tal quantificação?

- Fazendo um paralelo com substâncias lícitas...

O 'ferro velho do Devair', na Goiânia em 1987, expôs tão somente 19,26 g. de cloreto de césio-137, substância radioativa, com aquela quantidade de césio tendo sido extraída de uma cápsula de chumbo originalmente com menos de 100 gramas daquela substância. Disso resultou uma tragédia de grandes proporções políticas, econômicas e sociais.

Mal comparando efeitos perniciosas à saúde de pequenas quantidades de substâncias radioativas e drogas alucinógenas, a apresentação das primeiras geralmente é em gramas (como no caso do césio-137), enquanto das segundas pode ser até mesmo em microgramas (um milionésimo da grama). Um ‘selo’ de LSD (substância química chamada dietilamida do ácido lisérgico) pesa 60 microgramas. Vale dizer que mil deles não chegam a pesar uma grama (mas tão somente 60 miligramas...).

Os desdobramentos do incidente de Goiânia seguem em curso, mas já é bem conhecido que dele resultaram mais de 100 mil pessoas expostas aos efeitos da radiação e um número superior a 100 contaminadas interna e externamente. Das cerca de 20 submetidas a tratamento intensivo resultaram quatro óbitos diretos na contagem daquela época.

Isso tudo resultou do descarte, estocagem e manejo impróprios de muito pouco de uma substância lícita e considerada como um 'material perigoso', ainda que controlada por inúmeros órgãos públicos. Evidente que é de supor que o 'abrir da cápsula' (vitimizando em primeiro plano aqueles mesmos que a abriram...) ocorreu sem dolo pelos que estavam na 'ponta' desse ciclo inteiro, desde a fabricação ao descarte, no que levou a um grande desastre, ainda que com uma substância cuja finalidade é essencialmente terapêutica em sua aplicação radioterápica...

Que dizer de substâncias sabidamente perigosas e, mais que isso, 'ilícitas', fora de qualquer controle, dolosamente produzidas, comercializadas e utilizadas, mas capazes de causar um verdadeiro e previsível 'desastre social' em que as vítimas diretas e indiretas podem ser contadas aos milhões e milhares? - Que dizer de comunidades inteiras que hoje estão sob o jugo de 'comerciantes bandidos', capazes até mesmo de romper a dinâmica e a rotina de comércios mandados cerrar as portas e de estabelecimentos de ensino em que crianças e adolescentes deixam de poder freqüentar essas escolas sob o signo do medo e da ameaça? - Que dizer do estabelecimento de milícias, contraponto reativo ilícito da outra ponta da gangorra sórdida de uma dualidade criminosa que contém um narcotráfico que também estabelece suas próprias regras?

Também é referida, na matéria do UOL, a questão sempre recorrente da 'corrupção policial', espécie de ‘bode expiatório’ simplista para uma determinada corrente ideológica. Ainda que corrupta ela eventualmente possa ser, o é sob o 'efeito cascata' de toda uma situação estrutural. E se a corrupção policial existe, ela decorre, dentre outros fatores, da existência do próprio narcotráfico. E os efeitos dele, nas sanções legais, no que tange condições difíceis, senão mesmo impossíveis de precisar (caso do peso e porte), o mesmo estudo postula mitigar?! – Ora, escândalos recentes em uma das mais importantes e prestigiosas instituições de ensino superior do país não fizeram recair sobre a educação brasileira a razão da crise ética por que passa o país em suas mais altas instâncias políticas! – A educação e seus prepostos, tampouco a área da saúde e seus profissionais não estão em juízo, em que pese tudo que existe de criticável em tais sistemas. E eles talvez estejam em situação tão ou mais crítica que o sistema de justiça criminal do país... – Por que será?

Ora, é citado textualmente na matéria: "A atuação da polícia, nesse sistema, é ainda comprometida pela corrupção, que filtra os casos que chegam ao conhecimento do Judiciário". É isso que supostamente aponta também o estudo. “Este ciclo vicioso muito tem contribuído para a superlotação das prisões com pequenos traficantes pobres, e para a absoluta impunidade dos grandes, complementam os pesquisadores”. Novamente é imputada à polícia a responsabilidade de uma situação que remonta aos próprios princípios normativos legais vigentes, já que a legislação penal do país, de 1940, é hoje incompatível com o poder econômico necessário para que alguém goze o mais plenamente possível o direito de ampla defesa...

Mas se pode ser verdadeiro que a polícia esteja comprometida pela corrupção, filtrando casos que contribuem para a prisão de pequenos traficantes pobres que superlotam as prisões, cabe uma ressalva. Para tanto, é preciso novamente remontar ao pronunciamento de Bojan Dobovsek no que tange a corrupção, no mesmo pronunciamento dele citado antes (1996: College of Police and Security Studies na Eslovênia).

"Os lucros de uma suposta tipologia delitiva do gênero (crime organizado) representam um perigo crescente para o Estado e a Sociedade, já que esses lucros são investidos, por um lado, em negócios totalmente legais -- com a chamada 'lavagem de dinheiro' -- enquanto pelo outro, os mesmos lucros representam um enorme potencial de corrupção".

Ora, onde estão os 'lavadores de dinheiro', o mesmo dinheiro que compra grandes partidas de cocaína da ordem de toneladas, desde seus centros produtores, abastecendo um país onde ela é comercializada sem que a folha de coca (insumo básico) seja nativa ou sequer possa ser cultivada viavelmente em solo brasileiro. Onde estão as 'tinturarias de fachada' que pintam de sangue o 'tecido social' de um país de pessoas, famílias e comunidades assoladas pelo narcotráfico? - Onde estão os corruptores de uma polícia permanentemente acusada de corrupção?

Outro estudo do gênero talvez pudesse inferir o limite mínimo de quantidade de tráfico de drogas ilícitas que permite que mega-traficantes possam estar soltos e corrompendo a sociedade brasileira. Mas talvez pareça mais fácil, ou 'politicamente correto', inferir os limites máximos de quantidade de porte e uso de drogas capazes de permitir que seus médios e pequenos traficantes e/ou usuários devam ficar soltos para corromper, em outra dimensão, a mesma sociedade.

Enquanto isso é continuar assacando contra as polícias (institucional e individualmente consideradas), as quais são acusadas como ineptas e corruptas para reprimir 'por baixo'. Mas é preciso lembrar-se de assacar também, de maneira menos inconseqüente, contra a ‘polícia genérica’ que é o próprio Estado, em suas várias outras expressões institucionais (ou seja, junto com as ‘polícias propriamente ditas’) -- quando a polícia ‘vem por cima’ e não são tantos, nem tão pobres, os que terminam presos...

- Qual é a ideologia que informa tudo isso afinal?! - Que país é esse? - Que país é esse de todas as CPIs e de uma polícia supostamente inepta, violenta e corrupta? - Os resultados das CPIs não parecem produzir resultados diferenciados dos produzidos pelos flagrantes e inquéritos das polícias supostamente ineptas, violentas e corruptas. - Que país é esse em que a ‘defesa social’ é um conceito proclamado na retórica política, mas não que não é praticado na praxe da gestão como um todo?

Defesa social é uma expressão que amplia o conceito de segurança pública, mais além da prevenção e repressão de competência circunscrita às instituições constitucionalmente específicas para tal fim. Ao invés de estrutural e organizacional, a noção de ‘defesa social’ é instrumental. Ela pressupõe a participação de todos os setores do Estado (assistência social, defesa, educação, infra-estrutura urbanística, justiça, relações internacionais, saúde, segurança pública, etc.), bem como de todas as esferas políticas: municipal, estadual e federal, sem deixar de incluir a iniciativa privada e organizações não-governamentais (ONGs) no diagnóstico, planejamento, financiamento, execução e avaliação de políticas, planos, programas e ações de prevenção de questões afetas à paz social.

- O narcotráfico talvez seja hoje a maior de todas essas questões...
Imagem/Fonte: FERRO JÚNIOR, Celso Moreira; DANTAS, George Felipe de Lima. A descoberta e a análise de vínculos na complexidade da investigação criminal moderna . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1441, 12 jun. 2007. Disponível em: . Acesso em:
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09 ago. 2009.

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