20 de jul. de 2009
O Esclarecimento de Homicídios e a Polícia Brasileira: Em Busca do "Bode Expiatório” Examinando o Pasto
George Felipe de Lima Dantas
20 de julho de 2009
(Imagem: Southern Justice - 1965 - Norman Rockwell)
O 'Correio Braziliense' [(CB) -- (Brasília, sexta-feira, 3 de julho de 2009 -- Página 7: 'E o crime nem precisa ser perfeito')] noticiou resultados de um estudo realizado sob a forma de pesquisa acadêmica levada a efeito por quatro instituições de ensino superior (IES) do país -- 'O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica’. No artigo do conhecido periódico são elaboradas, de uma ou outra forma, pela equipe do CB ou em supostas citações dos autores do estudo, considerações conclusivas sobre temas como (i) o inquérito policial (IP), (ii) as taxas de elucidação de ocorrências de homicídios com registros policiais, bem como (iii) algo sobre os questionamentos relativos a velhos contenciosos corporativos policiais.
O anúncio, já no título, de que o tema/objeto estudado recebeu tratamento metodológico empírico na consecução da pesquisa sugere reflexões que merecem certa atenção. Entre elas, a de que a pesquisa, porquanto classificada de 'empírica', foi baseada em experimentação ou observação, isto é, focada em evidências obtidas de uma e/ou outra forma. Mas é de supor que tenha sido o caso de 'observação', calcada em instrumentos do tipo 'relatos', fruto de entrevistas estruturadas ou não.
Os objetivos de tal processo (empírico, repetindo) incluiriam procedimentos como (i) a captura de dados contextuais, holísticos e não sujeitos a valoração ética (mas sim neutralidade) da parte do pesquisador, segundo tipicidade da chamada 'pesquisa etnográfica', com dados advindos de situações culturais complexas, como seria o caso de procedimentos policiais realizados com fulcro na figura do inquérito policial (com todo seu detalhamento, nuances e respectivos questionamentos teóricos e práticos); (ii) resultados de uma 'aprendizagem' acerca do tema, advinda da experiência adquirida pelos participantes/autores em uma pesquisa de campo do tipo observação não-participativa (já que a 'participativa' estaria prejudicada, evidentemente, pelo fato da investidura policial não poder ser transferida a terceiros sob penas legais) ao abordarem o ‘fazer policial investigativo’, campo técnico-profissional em exame e, finalmente; (iii) sob o foco da identificação, exploração, confirmação e promoção ou contraposição de aspectos teóricos acerca do tema estudado -- o que não fica indicado no artigo do CB, já que não vão citadas as teorias dominantes e/ou alternativas existentes e apontadas na literatura técnica de justiça criminal (brasileira e/ou mundial). Tudo isso em relação ao IP e suas alternativas, ao fenômeno dos homicídios determinados em situações de inquérito ou flagrância, aos padrões e/ou paradigmas de taxas de elucidação de casos de ambos tipos de procedimentos e no tocante às contradições (em relatos descritos e supostamente contrabalanceados em suas oposições) na área dos conhecidos contenciosos corporativos de recursos humanos policiais, etc.
Segundo consta no artigo do CB, "A taxa de elucidação considerada no estudo refere-se ao número de inquéritos policiais que chegaram a ser remetidos ao Ministério Público. Aponta o texto do CB: 'Verificamos em alguns locais, como o Rio de Janeiro, índices baixos e preocupantes'". - O que seriam índices baixos, médios ou altos? E sob que parâmetros ou métricas eles seriam ‘preocupantes’? - Com respeito a tal assertiva sobre índices, pode ser bastante contraditória a questão da validade da comparação interespecífica referida no artigo (comparação entre taxas percentuais de esclarecimento de homicídios de diferentes locais do Brasil, citados, dentre outros, os casos do Distrito Federal, do Rio de Janeiro e de São Paulo), o que já não seria o caso (contradições de validade) considerando os mesmos locais e suas taxas respectivas ao longo de um determinado período de tempo (comparação 'intra-especifica').
Como exemplo fictício, poderia ser mais válido determinar e cotejar taxas de esclarecimento de homicídios ocorridos em "Lugarlândia" na última década, verificando se elas são crescentes, estáveis ou em declínio no período considerado. Ou seja, é possível fazer inferências mais válidas (sobre 'o objeto" que é medido) e confiáveis (função de 'como' o objeto é medido), considerando a taxa de elucidações em um mesmo local em uma determinada série histórica (período temporal). Diferente de elaborar sobre taxas de elucidação desiguais, quiçá resultantes de diferentes processos de medida, realizados em diferentes locais onde podem estar ocorrendo fatos distintos, ainda que pertinentes a um mesmo fenômeno e em uma mesma série histórica (como vai apontado no artigo do CB).
A estatística é um ramo da matemática que trata, dentre outras coisas, da coleta de dados que, resumidos com a utilização das chamadas 'funções estatísticas', permite que se chegue a conclusões genéricas e sejam feitas previsões correspondentemente. No entanto, os propósitos dados subjetivamente a tais conclusões e previsões podem distorcer o fenômeno apurado. Nesse sentido, vale citar Joseph Stalin (1879 - 1953) ao referir que "A morte de um homem é uma tragédia, enquanto a morte de milhões deles é uma estatística". Mas se é essa a visão revolucionária de 'medidas estatísticas' do ex-Secretário-Geral do Partido Comunista Soviético (1922-1953), tantas vezes 'reeleito' líder político, ela não parece menos peculiar do que a de um outro líder político, por seu turno conservador, Benjamin D'Israeli (1804-1881). Benjamin, ex-primeiro-ministro Britânico (em 1868 e 1874-1880), chegou a afirmar que "Existem três tipos de mentiras: mentiras, 'mentiras deslavadas' e estatísticas". Este mesmo bordão foi depois vulgarizado nos EUA por Mark Twain (1835-1910), como referência ao 'poder de persuasão dos números', pela estatística, para dar suporte a argumentos questionáveis e que de fato não podem estar amparados nos números anunciados por seus proponentes. Já Andrew Lang (1844-1912) vai mais longe na bazofia sobre a estatística, ao apontar mordazmente que "Um previsor de pouca sofisticação usa a estatística como um homem bêbado usa os postes de luz -- para apoio em lugar de iluminação"...
Assim é que é possível, ao comparar a taxa de elucidação de homicídios de diferentes locais, comparar equivocadamente fenômenos tão diversos em seus atributos que eles se diferenciam acentuadamente (ainda que levem o mesmo nome -- homicídios ou coisa que o valha), fazendo supor comparações de mesmas coisas, quando de fato elas não o são. O fenômeno social dos homicídios é sabidamente marcado por motivações predominantes, que por sua vez são características de cada local do mundo (e até mesmo do momento histórico em que ocorrem).
Ou seja, um fenômeno como o dos homicídios pode apresentar propriedades consideravelmente distintas, próprias de cada local específico de ocorrência (não só pelo mundo afora, como também em um país com dimensões continentais e grandes disparidades políticas, econômicas e sociais como certamente é o caso do Brasil), a ponto de ter sua comparação prejudicada. No caso, seria como comparar 'alhos com bugalhos' (alho, conhecido tempero, com bugalho, noz-de-galha da árvore do carvalho). Realmente, à primeira vista, duas expressões bem parecidas em grafia, mas bastante distintas, de fato, em significado e finalidade respectiva.
Mas a questão é tão mais complexa, que até mesmo considerar freqüências brutas de homicídios e índices respectivos de um mesmo local pode produzir contradições práticas e perplexidade teórica. Clarindo Alves de Castro, em “Inteligência de Segurança Pública; Um Xeque-Mate na Criminalidade” (Editora Juruá, 2009), aborda a questão. Ele trata do caso específico do município mato-grossense de Colniza. O pouco conhecido município brasileiro foi apontado no ‘Mapa da Violência’ elaborado pela ‘Organização dos Estados Ibero-Americanos’ (OEI) como sendo o mais violento do Brasil. E em números até pode parecer que seja o mais violento e temido local do país.
Acontece que a localidade, de emancipação política datando de 1998, tem peculiaridades únicas. De fato, Colniza atingiu o índice de 165,3 homicídios por 100 mil habitantes entre 2002 e 2003 (o maior, numericamente, dos mais de 5.600 municípios do país), mas por razões que remontam a questões absolutamente singulares. São peculiares daquele tipo de local local os conflitos fundiários, a ‘pistolagem’, a violência no campo resultante da concentração de terras, a legislação fuundiária pertinente e a cobiça pela posse da terra em lugares tais, independente da unidade federativa que se queira considerar. Tudo isso terminou por indicar, ao pesquisador e autor Alves de Castro, aspectos únicos quanto aos homicídios de Colniza, em termos de local de ocorrência (zona urbana ou rural); instrumento do crime; perfil sociodemografico de vitimas e autores; bem como o fato de que tais ilícitos seriam translocalizados (envolvendo atores que não estão fixados apenas no Estado do Mato Grosso).
Algo semelhante pode ser verificado na comparação feita no CB entre o Distrito Federal e São Paulo e Brasília. Brasília, por exemplo, não possui zonas de exclusão social verticalizadas ('favelas', na acepção carioca da expressão, hoje contadas ao menos em 600 delas), de dinâmica criminogênica própria e de difícil ou até mesmo impossível acesso físico pelos agentes do Estado. Tampouco a capital do país apresenta uma atividade localizada e concentrada do narcotráfico e em confrontação direta com os agentes do Estado (como soe acontecer atualmente na 'Cidade Maravilhosa'). É de supor, portanto, que os delitos típicos da violência e da criminalidade urbana prevalentes em um e outro tipo de ambiente, homicídios inclusive, estejam menos prevalentes no Distrito Federal do que em outras unidades federativas do país, caso do Rio de Janeiro, onde o espaço geográfico urbano (modelado pela ocupação desordenada) possui configuração física e humana própria, diferenciada da de outras regiões do país.
- É possível comparar a efetividade das polícias do Distrito Federal e do Rio de Janeiro (no caso de taxas de esclarecimento de homicídios), sem levar em conta aspectos até mesmo fisiográficos em consideração? - Os 'níveis de esclarecimento' de homicídios dessas duas unidades federativas são 'científica e racionalmente' comparáveis? - Parece que não...
O próprio artigo jornalístico em exame cita (paradoxalmente), argumentando na mesma direção que o autor deste comentário, "Na Inglaterra, por exemplo, o índice de elucidação chega a 95%. (...) Lá a maior parte dos crimes é de ordem passional, mais fáceis de serem resolvidos". Ou seja, segundo o periódico, a mesma tipologia de delitos referidos (homicídios), ao serem praticados na Inglaterra, teriam uma determinada característica nacional predominante de motivação, fazendo com que seus quocientes de elucidação não pudessem ser 'desavisadamente comparados' com taxas de elucidação de homicídios incidindo em locais de característica nacional predominantemente distinta. E isso, repetindo, vai afirmado pelos próprios autores do artigo do CB, ainda mesmo que não acreditemos que possa ser tão confiável ou verossímil imaginar que o 'homicídio à inglesa' seja real e majoritariamente passional como vai lá afirmado. Mais verossímil poderia até parecer ser a morte passional por duplo suicídio, 'contada à inglesa', como na famosa obra do inglês William Shakespeare (1564 - 1616), Romeo and Juliet (Romeu e Julieta), na tragédia amorosa entre Capuletos e Montecchios, obviamente que não inglesa propriamente dita, mas de uma Verona italianíssima...
Ora, até mesmo para fazer comparações 'intra-especificas' do fenômeno dos homicídios, há que ter muita cautela (em relação aos números de um mesmo local variando ao longo do tempo). Nesse sentido, oportuno citar (abaixo) conteúdo do artigo "Uma "péssima compra" -- EUA: novas tendências do fenômeno do homicídio em função do narcotráfico" (George Felipe de Lima Dantas -- Federação Nacional dos Policiais Federais -- Ciência & Arte Policial 27/12/2008). O artigo vai transcrito na íntegra, a seguir, ainda que com alguns pequenos acréscimos e supressões mínimas, em texto retrabalhado pelo próprio autor do documento original.
Interessante, talvez mesmo paradoxal, a constatação norte-americana do declínio nas taxas de esclarecimento de homicídios, ainda que com todas as tecnologias forenses emergentes do século XXI, incluindo 'novas' técnicas e respectivas tecnologias de identificação humana por fragmento genético (DNA), tidas e havidas como instrumentais para uma maior e melhor resolução de antigos e novos casos de homicídios. É isso que dá conta, entre outras fontes, o periódico Criminal Justice Policy Review (Volume 17, número 1, páginas 32 a 47, ano de 2006) acerca da expansão do uso da análise forense de DNA em proveito da investigação criminal de antigos e novos casos.
E é verdadeiramente paradoxal o fato de que tais avanços da análise forense de DNA não estejam sendo acompanhados de maiores taxas de esclarecimento de homicídios ocorridos naquele país. É isso que indicam as taxas de esclarecimento determinadas nos Estados Unidos da América (EUA) na série histórica de dados que vai do início dos anos 1960 até os que correspondem aos dias atuais.
Os números estudados que revelam a tendência são os mais recentemente difundidos pelo Federal Bureau of Investigation [(FBI) (Bureau Federal de Investigação)], universalmente conhecido órgão policial federal norte-americano e que mantém o sistema Uniform Crime Report [(UCR) (Relatório Padrão do Crime)] em funcionamento desde a década de 1930 (são as mais antigas estatísticas sistematizadas de segurança pública, nelas incluídos índices de elucidação ou resolução de crimes).
Vale ressaltar que, de maneira geral, o esclarecimento de ocorrências policiais de homicídios, de acordo com a metodologia UCR apontada pelos norte-americanos, acontece pela determinação direta ou indireta da autoria do delito pela autoridade policial. Existem também meios excepcionais de esclarecimento. Já a que foi apontada no CB e produz comparações internacionais com o Brasil “Refere-se ao número de inquéritos policiais que chegaram a ser remetidos ao Ministério Público”. Ou seja, coisas diferentes sendo comparadas como se da mesma natureza fossem...
Considerando que a metodologia para estudos sobre o esclarecimento de casos de homicídios tenha sido mantida constante nos EUA desde 1963 (4.566 ocorrências brutas havidas naquele ano), as taxas já disponíveis de esclarecimento de homicídios para 2007 (aplicadas sobre 14.811 ocorrências brutas havidas neste outro ano) apontam uma queda de 91% de esclarecimentos em 1963, para 61% em 2007 (redução linear média de cerca de 0,7% a cada ano desde então). Ou seja, uma redução linear total de 30%, ou anual média de cerca de 0,7%, em uma série histórica de 44 anos. A situação, naquela mesma série, já agora considerando cidades de mais um milhão de habitantes, também de acordo com o FBI, aponta níveis de esclarecimento que caem de 89% para 59%, respectivamente, em 1963 e 2007, novamente mostrando um diferencial para menos de 30%ao final da série de 44 anos.
É ainda mais marcada a tendência declinante da taxa de esclarecimentos quando se trata de cidades de maior porte demográfico, do que na média geral de esclarecimentos havidos nos EUA, independentemente do porte demográfico dos locais de ocorrência (taxa média do período).
Nas décadas de 1970 e 1980 a tendência decrescente das taxas de esclarecimentos norte-americanos aponta patamares menores ainda. No início de 1970 eram esclarecidos cerca de 80% dos casos, com a taxa baixando para menos de 70% ao final da década de 1980. Ou seja, a redução de 30 pontos percentuais nos esclarecimentos na "grande" série histórica 1963-2007, já mais recentemente, especificamente na subsérie histórica que corresponde ao período 1970-1980, vai ficando mais pronunciada ainda. A taxa de resolução de casos de homicídios, portanto, tende a diminuir mais ainda nos EUA, à medida que o tempo vai passando desde a década de 1960 até os dias atuais.
Ora, se o objeto é o mesmo e a metodologia de estudo foi mantida constante (e tudo indica que foi), é de supor que o fenômeno criminológico (incluídos entre seus objetos de estudo o crime propriamente dito, os criminosos seus autores e questões conexas como é o caso da taxa de esclarecimentos) no qual o delito do homicídio está inserido nos EUA, deve ter sofrido alguma transformação, vis-à-vis taxas de esclarecimento estavelmente declinantes (ainda que com eventuais agravamentos como entre 1970-1980) . E é exatamente isso o que intuem os membros da comunidade norte-americana de justiça ciminal, ao referir um incremento nas mortes por homicídio motivadas pela atividade do narcotráfico, mortes essas ocorridas geralmente em circunstâncias impessoais e/ou anônimas (autor e vítima que não se conhecem e com pouca ou nenhuma evidência que transcenda o "local do crime"), ao contrário de ocorrências de mesma tipologia penal havidas, por exemplo, no ambiente intralar (homicídios com ‘história’ e testemunhas melhor determináveis) e em espaços semi-públicos (em bares e restaurantes, por exemplo, passiveis de farta materialidade na investigação factual e com maior disponibilidade de prova testemunhal).
Aumentam, assim, os casos não-esclarecidos, pela própria natureza do fenômeno – muito possivelmente função da motivação mais típica -- que também passou a transformar-se (mudança qualitativa) e produzir incremento na freqüência de ocorrência (mudança quantitativa) e diferenciação para menos nas taxas de esclarecimento do fenômeno dos homicídios. Passa a ser simplista e meramente ideológica a referência a uma pior qualidade do serviço policial para explicar taxas 'pequenas' de esclarecimento de homicídios, tanto no Brasil quanto alhures.
A tendência às 'baixas' (sic) taxas de esclarecimento de homicídios não é questionada nos EUA quanto à eficiência policial. E vale notar que lá existe uma respeitável comunidade de acadêmicos mundiais de justiça criminal (distribuída em mais de 17 mil organizações profissionais do setor e em cerca de 700 programas acadêmicos de graduação da mesma área). É questionada, sim, a própria natureza hodierna do fenômeno. Talvez pelo fato de que os estudos e pesquisas criminológicas que informam políticas públicas nos EUA estejam hoje baseados majoritariamente em departamentos de ‘justiça criminal’ e não de ‘sociologia do crime’, com esta ciência social se ocupando de aspectos mais vinculados ao criminoso (na tradição da sociologia jurídica clássica) do que do crime propriamente dito e situações conexas da modernidade, seara dos agentes da segurança pública associados ao mundo acadêmico da 'justiça criminal'.
Mas 'nem tudo são flores', claro. Se o 'libelo acusatório' contra uma alegada falta de efetividade policial pode não ser verdadeiro, nem por isso os homicídios são menos deploráveis. O declínio das taxas de esclarecimento de homicídios parece representar uma nova ameaça no que tange a segurança pública, já que passa a aumentar não apenas o número de homicidas impunes, mas também a presença deles em meio a uma comunidade desavisada da sua existência e potencial adverso. Em verdade, a premissa hoje generalizada de que a motivação homicida ‘por motivo fútil’ (sem qualificar a ‘futilidade’ típica) pareça ser a modal (mais freqüente), pode não ser mais sustentável. Ela é apenas mais bam detectável e, por isso mesmo, obviamente, detectável, do que a resultante do narcotráfico, esta sim, muito provavelmente modal, ainda que certamente menos detectável e, correspondentemente, menos esclarecida conseqüentemente.
A hipótese por levantar pode ser a de que o grande, médio e pequeno negócio do narcotráfico, escapa, em sua equação lógica de causalidade, circunstancia e desfecho, da trilogia comercial ortodoxa típica e que inclui (i) segurança do investimento; (ii) rentabilidade do negócio e; (iii) liquidez financeira, três conhecidas variáveis combinadas em diferentes arranjos de ‘marketing’ nos negócios lícitos. O narcotráfico, obviamente de pouco ou nenhum ‘marketing aberto’, quando se trata do ‘lidar com o mercado’ – é um negócio em que a ‘segurança da transação’, em garantia, é a própria vida (integridade física) de provedores e consumidores. Este seria, entre outros, mais um ‘alto custo social’ do narcotráfico, fruto de uma atividade delitiva de grande rentabilidade (multiplicada a cada repasse do ‘produto’, dos grandes fornecedores até os ‘atravessadores’, retalhistas de ponta e 'usuários passadores'), bem como da ‘liquidez imediata’ de algo que não funciona, em valorização, como um ativo financeiro clássico (“commodity”?), como é o caso quando da aquisição prévia ou maturidade de títulos ‘em bolsa de mercados futuros’. Os 'negócios do narcotráfico' são quase sempre imediatos... Não há 'futuro' neles.
Assim, na equação desses três termos, a ‘segurança de traficantes e usuários’ tenderia a zero, enquanto a rentabilidade e a liquidez seriam maximizadas ao extremo em prol do ‘sucesso do negócio’. O Sexto Relatório Global sobre Crime e Justiça da Organização das Nações Unidas já apontava tal tendência em 1999: a do crescimento do narcotráfico, dado seus poderosos incentivos econômicos.
Nessa ‘microeconomia macabra’, as vidas dos ‘atores econômicos’ correspondentes seriam as próprias ‘garantias contratuais do negócio’, ocorrendo uma eventual eliminação sumária (homicídio) entre indivíduos que muitas vezes estariam fazendo contato comercial ilícito (causa) por uma única e primeira vez (circunstância). Tal relação estaria sendo estabelecida, usualmente, em locais públicos remotos e distantes de eventuais testemunhas, até mesmo para a conveniência delitiva de vendedores e compradores. Uma ‘ótima venda ilícita’ e uma 'péssima compra de risco', cada vez mais difícil do ‘vendedor ser preso’ pela eliminação física (homicídio) do ‘cliente’. Isso, obviamente, pode ser traduzido em 'baixas taxas de esclarecimento'...
De tudo acima exposto, ao menos no que tange a questão da 'taxa de esclarecimento de homicídios no Brasil', o estudo apontado no CB não acrescenta muito ao que já é sabido no meio policial mundial. Pode, inclusive, fazer sugerir, em sua visão quiçá parcial do fenômeno dos homicídios e respectivos esclarecimentos, uma visão conclusiva também parcial e por isso mesmo equivocada. Mais que isso ainda, ao apontar o IP como um procedimento burocrático desnecessário ou frágil, razão mesmo de ‘taxas preocupantes’ de esclarecimentos de homicídios, não consta que o estudo referido no CB aborde a própria burocratização reinante no país como um todo (tantas vezes incidente e proclamada como em prejuizo do próprio processo penal...), tampouco as alternativas políticas e culturais para escapar de tal 'macro-modelo'. Debitar ao IP baixas taxas de esclarecimento passa a ser, ao final, como 'culpar o feio por sua feiúra'...
É interessante notar, entretanto, a abundância de estudos correntes sobre segurança pública que vão de encontro ou ‘redescobrem’ o 'saber profissional universal consolidado', com as conclusões desses mesmos estudos, parciais ou totais, apelando para sentimentos preconcebidos (por formadores de opinião) e sistematizados sob o signo da 'empiria'. E o problema não está na empiria. O problema estaria em condições estruturantes pré-existentes (legislação, estrutura e funcionamento do sistema de justiça criminal, incluindo todas as suas instituições e não apenas a polícia) para assegurar o que existe de substantivo na expressão ‘segurança pública’ (condição) ou o que dela se infere enquanto fazer institucional (serviços prestados pelo Estado).
Talvez seja oportuno lembrar Ryszard Kapuściński (1932-2007),“Heródoto do nosso tempo”, historiador e jornalista nascido em território que hoje corresponde à Polônia, ao apontar circunstâncias históricas específicas em que a realidade é moldada correspondentemente ao poder de alguns em fazer tal ofício. “Uma população enfraquecida e exaurida pelo enfrentamento contra vários obstáculos (certamente o caso da insegurança pública/inserção nossa) -- da qual as necessidades nunca são satisfeitas e os desejos jamais são realizados -- está vulnerável à manipulação (...). A luta pela sobrevivência é, acima de tudo, um exercício altamente desgastante em termos de tempo, absorvendo e debilitando. Se estiverem postadas tais pré-condições, o mando de um determinado poder pode estar garantido por cem anos."
Enfim, é exatamente desta forma que é possível perceber hoje a segurança pública: com a realidade e o 'canto da sereia' sendo mesclados como se um só fossem, muitas vezes sob o signo de alguma 'ciência'... Uma fictícia, depois disseminada como real, para ser finalmente suposta e proverbial -- 'ignorância científica da gestão profissional da segurança pública' -- apenas robustece e faz recrudescer o fenômeno da 'luta pelo poder' no setor (cuja essência se superpõe mesmo às questões de segurança pública).
Tudo isso termina por dar mais margem ainda à manipulação da opinião pública, talvez pelo fato de que haja uma omissão sistemática dos profissionais do setor (segurança pública) em manifestarem-se, temerosos politicamente de serem acusados de ‘ser o que apenas eles sabem que não são’ e de proclamar o que ‘apenas eles sabem que não é o que parece ser’. A 'busca pelo óbvio', em tempos tais, pode proporcionar a sabedoria socrática necessária aos mais desavisados.
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