Fonte de "O REINO DESTE MUNDO": A história do ponto de vista dos oprimidos por Silvana Benevenuto: <http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/BaleianaRede/numero2/maispalavras2.htm>
O REINO DESTE MUNDO
A história do ponto de vista dos oprimidos
Silvana Benevenuto[1]
No Reino dos Céus não há grandeza a conquistar, pois lá toda a hierarquia já está estabelecida, a incógnita solucionada, o viver sem fim, a impossibilidade do sacrifício, do repouso, do deleite. Por isso, esmagado pelos sofrimentos e pelas Tarefas, belo na sua miséria, capaz de amar em meio às calamidades, o homem poderá encontrar sua grandeza, sua máxima medida, no Reino deste Mundo. (Alejo Carpentier).
I. Apresentação
Este artigo apresenta o romance histórico O Reino deste mundo, de Alejo Carpentier, escritor cubano, cuja obra inaugura a tendência da literatura latino-americana em resgatar a história nativa dos povos americanos, em contraposição a história escrita pelo ocidente moderno europeu, que tratou de promover o esquecimento de nossas verdadeiras origens. É com essa obra também, que surge pela primeira vez o termo “Realidade Maravilhosa”, assim chamado por Carpentier, ao descrever as “maravilhas” tão particulares às Américas e impossíveis de serem descritas tão ricamente pela Europa. Nas palavras de Carpentier: “(...) a cada passo [dado nas Américas] encontrava a Realidade Maravilhosa (...) Pensava que essa presença (...) não era privilégio único do Haiti, senão um patrimônio de toda América.” (CARPENTIER. Prefácio.O Reino deste mundo).
II. Sobre o autor e suas obras
Alejo Carpentier nasceu em Havana (capital de Cuba), em 1904. Foi filho de pai francês e mãe russa, um homem de formação européia, mas que abraçou a Cuba nativa, colocando-se a serviço do novo mundo.
Carpentier estudou arquitetura, foi assistente teatral no Haiti e era músico de formação. Escreveu um livro importante sobre música cubana, proporcionando aos europeus a arte original de cantores como Estebán Caturla – esse foi o primeiro livro latino-americano de Carpentier. Viveu em Paris na companhia de importantes pintores como Aragon e Picasso e, sobretudo, conviveu com os surrealistas, a cuja maneira chegara a escrever poesias e contos. Contudo, renegou seu passado de europeu requintado e voltou à Cuba, onde o surpreendeu a crise.
Começou a escrever poesia negra. Participou de movimentos políticos esquerdistas contra a ditadura de Gerardo Machado, anterior ao regime de Fidel Castro. Foi preso. Começou a escrever o romance socialEcue-Yamba-O, terminado em Madri, onde Carpentier freqüentava o círculo de García Lorca. Outra influência importante foi seu companheiro de quarto Georg Lukács.
Passou anos de exílio em Caracas, voltou para Cuba depois da vitória de Fidel Castro. Fez importantes viagens pelo México e Haiti, onde se interessou pela revolta dos escravos do século XVIII. Com a vitória de Castro, Carpentier aderiu a revolução e ocupou cargos de destaque até virar uma figura ornamental do governo cubano. Morreu em Paris como ministro conselheiro para assuntos culturais da embaixada, em 1980.
Além de O Reino deste Mundo, outras obras do autor foram Os Passos Perdidos (1953), um diário fictício de um músico cubano a serviço dos EUA, para colecionar musicais folclóricos da região do Amazonas;Guerra do tempo (1958); O Século das Luzes (1962), entre outras.
Carpentier com sua experiência revolucionária reconheceu que as idéias de libertação chegaram da Europa, por isso considerou necessário estudar a Revolução Francesa e seu impacto sobre as populações escravizadas do Caribe. Descreveu esse acontecimento emromances históricos, como a obra que trataremos O Reino deste Mundo,escrito em 1949, narrando a história de uma ditadura libertadora dos negros do Haiti.
Nessa obra, o autor observa os aspectos da desoladora história haitiana, elevando-se à voz de consciência social. Trata dos “sem história”, dos esquecidos, como protagonistas dos principais acontecimentos históricos - como Ti Noel, Mackandal, Bouckman, o jamaicano, entre outros. Narra a história do ponto de vista dos oprimidos e não dos vencedores, opressores.
III. O romance histórico da América Latina
Na Europa do século XIX surge o romance histórico que usava o passado como forma de legitimar o discurso universalizante do Ocidente e visava consolidar o sentimento nacional. O século XIX foi o momento de construção da tradição européia, ou seja, da construção de um passado que fundamentasse as atitudes do presente e lançasse as bases de uma autoridade das nações do continente europeu. Surge, portanto, num contexto de profunda fé historicista.
O século XX abalou o otimismo na história. Contudo, quando isso ocorre, a imagem da Europa como berço da civilização já estava suficientemente consolidada nos corações e mentes dos europeus e dos povos colonizados, ou seja, as grandes narrativas gestadas pela Europa já haviam consolidado uma identidade extraída de uma tradição supostamente contínua, mas que era forjada.
O romance histórico brasileiro do século XIX reflete esse impasse. Segue a literatura de fundação da nacionalidade, procurando amenizar os traumas da conquista ibérica e criando imagens que nos aproximassem do modelo de civilização européia, trabalhando, desse modo, mais com o esquecimento do que com a memória histórica para nos dar um perfil mais homogêneo e esconder nossa diversidade. Exemplo desta perspectiva é possível notar em obras como Iracema e O Guarani, de José de Alencar. Ortiz observa que,
a construção da memória nacional se realiza através do esquecimento. Ela é o resultado de uma amnésia seletiva. Esquecer significa confirmar determinadas lembranças, apagando os rastros de outras, mais incômodas e menos consensuais. (ORTIZ, apudFigueiredo,http://members.tripod.com/~lfilipe/Vera.html)
O romance histórico surge somente a partir do século XX, sobretudo, na América Hispânica, como uma literatura capaz de rever a história contada pelo colonizador, reinterpretar o passado e construir uma nova visão da história, mais compatível com a realidade latino-americana. O romance O Reino deste mundo inaugura essa tendência, inserindo a necessidade da história como parte do esforço de descolonização, que se realiza contra uma mentalidade perpetuada pelas elites locais.
O que move esse novo romance histórico, portanto, é a vontade de problematizar o discurso racionalista do Ocidente, para contemplar nossa realidade multifacetada. Essa consciência cria a “literatura de resistência” - expressão de Edward Said -, forte e revolucionária, visando mudar a identidade forjada e resgatar nossa história. Um aspecto importante desta problematização é a ruptura com a linearidade. A literatura latino-americana, de Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, Gabriel Garcia Márquez, Carlos Fuentes e outros, trabalha com a multitemporalidade:
No lugar do tempo retilíneo, trabalha com a simultaneidade temporal, o tempo circular, o tempo mítico ou a mistura de várias concepções de tempo. Escreve-se uma anti-história eufórica dos vencedores. Problematiza-se a enunciação com o intuito de relativizar verdades tidas como universais e absolutas. (FIGUEIREDO,http://members.tripod.com/~lfilipe/Vera.html).
A contestação da história como desenvolvimento linear e da idéia de uma história universal poderia ser vista como manifestação da crise do pensamento moderno (poderia ser acusado de característica pós-moderna), mas, segundo Vera Foullain Figueiredo, seu surgimento não vem acompanhado da perda do sentido revolucionário. Ao contrário, cria outras utopias, transferindo a esperança para aquilo que foge da razão instrumentalizada e favorece a valorização das culturas periféricas, como vemos com as inovações da literatura latino americana.
No Brasil, o modernismo da década de 20 - Macunaíma, por exemplo - representa a crítica à história criada pelo Ocidente, com propósitos descolonizadores. Contudo, no Brasil esse tipo de literatura de resistência não é tão forte quanto na América Hispânica.
IV. Realidade Maravilhosa
No Prefácio do romance O reino deste mundo, Carpentier compara o maravilhoso suscitado nas terras do Haiti com a pretensão da literatura européia em caracterizar o maravilhoso. Diz que o maravilhoso na pintura ou literatura européia era obtido com truques de prestidigitação, reunindo objetos sem finalidade alguma, e, assim, a “força de suscitar o maravilhoso a todo transe, os taumaturgos tornaram-se burocratas”.
Invocando através de fórmulas arquissabidas – que, transformaram certas pinturas num monótono armarinho de relógios derretidos, manequins de costureira e vagos monumentos fálicos – o maravilhoso resulta apenas num guarda-chuva, numa lagosta (...) Aprender códigos de memória é pobreza de imaginação. E hoje existem códigos para o fantástico. (CARPENTIER, Prefácio).
Contudo Carpentier diz que “antes de tudo, para suscitar o maravilhoso é necessário ter fé. Aqueles que não acreditam em santos não se podem curar com milagres de santos... ” (CARPENTIER. Prefácio).
Eis a razão por que o maravilhoso invocado sem fé, como o fizeram os surrealistas durante tantos anos – nunca foi senão uma artimanha literária, tão aborrecida, ao prolongar-se demasiadamente, quanto certa literatura onírica ‘arranjada’ e certos elogios à loucura tão comuns hoje em dia. (CARPENTIER, Prefácio).
Na literatura européia existiu um herói (no conto sexto do Maldoror) que, perseguido pela polícia, escapa de um “exército de agentes e espiões” adotando a aparência de diversos animais e fazendo uso de seus poderes de transportar-se para Pequim, Madri ou São Peterburgo. Na América, que nunca nada parecido foi escrito, existiu um Mackandal, dotado desses mesmos poderes pela fé de seus contemporâneos.
O autor narra o romance histórico por “uma sucessão de fatos extraordinários, ocorridos na ilha de São Domingos, (...) deixando-se que o maravilhoso emane livremente de uma realidade estritamente seguida em todos os seus detalhes”. O livro respeita a verdade histórica dos fatos, dos nomes dos personagens – incluindo novos. E nessa ilha “tudo é maravilhoso, nessa história impossível de situar-se na Europa, e que, todavia, é tão real como qualquer feito exemplar daqueles consignados, para edificação pedagógica, nos manuais escolares. Mas o que é a História da América senão toda uma crônica da Realidade Maravilhosa?”. (CARPENTIER, prefácio).
V. Contexto histórico
O açúcar produzido nas américas era o produto agrícola mais importante para o comércio da Europa. Os escravos eram trazidos da África para proporcionar mão-de-obra numerosa e gratuita. Da plantação colonial subordinada às necessidades estrangeiras e financiada do exterior provêm o latifúndio de nossos dias. Esta é uma das causas que estrangulam o desenvolvimento econômico da América Latina e um dos principais fatores da marginalização e da pobreza das massas latino-americanas.
Na segunda metade do século XVIII, a maior produção de açúcar brotava do solo do Haiti, uma colônia francesa que na época se chamava São Domingos. Essa produção empenhava meio milhão de escravos, a maioria africanos. Apesar disso, o país foi o primeiro a conquistar a Independência, em 1804. Mesmo assim, o Haiti não teve uma trajetória progressiva, ao contrário, tornou-se o país mais pobre do continente.
A ilha de São Domingos se dividia entre o domínio francês e o espanhol. A ilha fora “descoberta” por Colombo na primeira viagem à América. Os nativos foram completamente exterminados no processo de colonização européia.
Os escravos negros eram dominados por trinta mil brancos. Além de negros e brancos havia os mulatos que já eram livres, mas que também eram submetidos às agressões dos brancos escravocratas. Apesar disso, segundo James (2000), alguns mulatos pertenciam a uma pequena casta privilegiada (eram cozinheiros, criados, serventes, arrumadeiras, enfermeiras, acompanhantes femininas, etc) estes conseguiram aproveitar as oportunidades e alguns se alfabetizaram e enriqueceram, como Henri Christophe, Toussaint L’Ouverture e Dessalines.
Em Paris, após a Revolução de 1789, a Convenção proclamou a libertação dos escravos nas colônias francesas. A notícia espalhou rapidamente em São Domingos e em 1791, iniciou-se a rebelião dos escravos, que abandonaram as plantações, destruíram engenhos e agrediram os brancos, matando vários proprietários. Um desses negros “privilegiados”, Toussaint L’Ouverture, que fora alfabetizado, leu duas grandes obras que o influenciaram a revolução, uma de Abade Raynal – que descrevia a situação realista das colônias européias do Caribe e exaltava a necessidade de um líder que chefiasse os escravos na revolta – e a outra de Júlio César. Dotado de instrução acima dos outros ex-escravos, Toussaint L’Ouverture conseguiu facilmente ascendência e liderou um exército de combatentes que derrotou o exército dos franceses, dos espanhóis e dos ingleses. O problema foi que Toussaint manteve a colônia de açúcar para que continuasse a prosperidade econômica e acabou escravizando os negros com o trabalho compulsório das fazendas.
Antes, porém, de Toussaint, um escravo chamado Mackandal – a quem o livro de Carpentier faz referência de maneira brilhante com seu realismo mágico e mítico – exercia resistência à escravidão e chefiava um quilombo. Os quilombolas foram formados por negros sem instrução que não suportavam a escravidão e fugiam para as montanhas e florestas. Mackandal unia os negros no plano de expulsar os brancos da colônia. Ainda segundo James, Mackandal “era um orador (...) com a mesma eloqüência dos oradores europeus (...) diferente apenas na força e no vigor, em que lhes era superior” (JAMES, 2000, p. 35). Era um maneta, devido a um acidente, que “tinha uma fortaleza de espírito que sabia preservar mesmo em meio a mais cruel das torturas” (Ibidem).
Mackandal dizia prever o futuro e convenceu seus seguidores (no romance de Carpentier, um deles é o personagem central, Ti Noel) de que era imortal. O seu grupo saía pelas fazendas para converter mais escravos para o bando e estimular seus seguidores ao grande plano de destruição da civilização branca de São Domingos.
Mackandal tentara acabar com o domínio dos brancos envenenando a água de todas as casas da província. Um dia embebedou-se e acabou falando demais, sendo denunciado, capturado e queimado vivo – este episódio é narrado brilhantemente por Carpentier, da forma como o veneno se espalhou pelas casas, das metamorfoses de Mackandal escondendo-se dos brancos e de sua morte.
Em 1801, Napoleão Bonaparte envia a São Domingos uma expedição de 25 mil soldados sob o comando de Leclerc, esposo de sua irmã, Paulina Bonaparte, para intervir no levante dos escravos e tentar restabelecer a escravidão. Mas, o líder Toussaint vai à luta, juntamente com Dessalines, ex-escravo analfabeto que revelou maestria de chefe militar. Leclerc aprisionou Toussaint, que acabou morrendo mal alimentado, em 1803. Mas mesmo com o afastamento de Toussaint, Leclerc perdeu o combate. Seu exército sofria perdas em conseqüência das doenças tropicais e da febre amarela da qual Leclerc, em 1802, veio a falecer.
Segundo a narrativa de O reino deste mundo, cuja perspectiva assume o ponto de vista escravo, a morte de Leclerc “vitimado pelo vômito negro” é uma vingança do trópico contra ele. Paulina Bonaparte, sua esposa, desespera-se, descrê na ciência, já que os médicos não conseguem remédios que curem o mal, e apega-se a Soliman, o negro massagista com o qual mantêm relações pessoais, passando a realizar rituais e trabalhos mágicos tentando a cura de Leclerc. Com sua morte, Paulina desespera-se e retorna à França.
Os escravos haitianos, tendo alguns líderes como Henri Christophe e Dessalines, vencem a revolução. Em novembro de 1803, os revolucionários negros – chamados de jacobinos negros, por defenderem o ideal jacobino de liberdade e igualdade de todos os homens (enquanto na França a guilhotina decepava a cabeça dos jacobinos) – divulgam a declaração da Independência. E em 31 de dezembro de 1803 era lida a Declaração da Independência e o Estado recebia de batismo o nome indígena Haiti, que significa montanha.
VI. O Reino deste mundo
O Reino deste mundo narra a história da revolta dos escravos no fim do século XVIII, no Haiti, tendo sob ponto de vista a perspectiva dos escravos, ou seja, dos vencidos, dos oprimidos e toda sua história particular de crenças míticas nas divindades e nas forças sobrenaturais.
Carpentier faz estilhaçar, de maneira rica, metafórica e irônica, a razão do Ocidente europeu, dono da verdade e da objetividade dos fatos, narrando a história privilegiando a verdade dos negros escravos, a verdade do cotidiano, do senso-comum e não a verdade absoluta e imutável da razão positivista.
Nesse sentido, logo no primeiro capítulo do livro, o autor narra uma ida do senhor Mousieur Lenormand de Mezy, com seu escravo Ti Noel, personagem central da história, à barbearia, onde o escravo diverte-se com as cabeças de cera expostas na estante da barbearia, com perucas, comparando-as com as cabeças de terneiro expostas no açougue “esfoladas, com um raminho de salsa sobre a língua, que tinham o mesmo tom da cera (...) Ti Noel se divertia pensando que ao lado das cabeças de terneiro descoradas, serviam-se, na toalha da mesma mesa, cabeças de brancos senhores. (CARPENTIER, p. 2).
Ti Noel que havia sido instruído por Mackandal, o escravo que já mencionamos no contexto histórico, comparava o Rei da África, guerreiro e valente, aos reis da França:
Reis eram reis de verdade, e não esses soberanos cobertos de cabelos alheios, que jogavam a bola e só sabiam imitar os deuses nos palcos de seus teatros da corte, exibindo a perna amaricada ao compasso de uma contradança. (CARPENTIER, p. 4).
Podemos perceber que a história ao ser narrada sob o ponto de vista do escravo ganha a liberdade de ironizar e ridicularizar sem medidas aos europeus. O autor, tomando emprestado o olhar do escravo Ti Noel, chega a comparar a virilidade de um rei africano a um rei europeu:
Na África, o rei era guerreiro, caçador, juiz e sacerdote, seu sêmen precioso engrossava em centenas de ventres uma vigorosa estirpe de heróis (...) E quanto à virilidade não ia além de gerar um debilóide, incapaz de abater um veado sem a ajuda de seis batedores. (CARPENTIER, p. 4).
Segundo o narrador de O reino deste mundo, Mackandal, que ficara maneta num acidente, é destinado a cuidar do gado. Lá ele passa a observar que havia certas plantas que o gado não comia e planeja o envenenamento dos brancos senhores.
O maneta Mackandal, ogã do ritual Radá, investido de poderes extraordinários, porque vários deuses tinham baixado nele, era o Senhor do Veneno (...) tinha proclamado a cruzada de extermínio, eleito, como ele havia sido, para acabar com os brancos e criar um grande império de negros livres em São Domingos. (CARPENTIER, p. 19).
Os senhores saíam à procura de Mackandal e este, para fugir à captura, passa a disfarçar-se, metamorfoseando-se em vários insetos, animais e aves. Quatro anos duraram suas metamorfoses até que retornasse à vestimenta de homem. Contudo, ele acabou sendo capturado e, na noite de seu suplício, os senhores reuniram os negros para que assistissem sua tortura e esta servisse de exemplo a outros negros traidores.
Os negros sabiam dos poderes de metamorfoses de Mackandal e aguardavam tranqüilos. Acreditavam que no momento do suplício, Mackandal se metamorfosearia. E, de fato, quando o fogo começou a subir até o maneta, Mackandal “esticou-se no ar, voando sobre as cabeças, antes de mergulhar nas ondas do negro mar de escravos” (CARPENTIER, p. 31).
Um grande alvoroço se fez e os negros nem viram que dez soldados capturaram Mackandal e o queimaram vivo. “Mackandal tinha cumprido sua promessa, permanecendo no reino deste mundo” (idem, p. 31).
Outros ataques dos europeus são feitos quando, por exemplo, o autor narra o envolvimento do amo Monsieur L. Mezy com uma má intérprete de papéis no teatro, Mademoiselle Floridor, que, indo morar na fazenda com o senhor, vingava-se de seu fracasso artístico chicoteando as negras e, quando bêbada, declamava os papéis que nunca pode interpretar. Os negros nada entendiam do que ela dizia e achavam que ela devia ter cometido terríveis crimes.
Ti Noel transmitia a seus filhos as narrativas de Mackandal e os negros o reverenciavam. Em contraste, haviam os senhores e suas imoralidades, como as do Monsieur Lenormand de Mezy que, bêbado, corria atrás das mocinhas e da senhora “louca”.
A guerra também é narrada sob a perspectiva dos nativos, tanto que o ataque aos brancos é planejado com um ritual a Ogum das armas, em que um facão é colocado no ventre de um porco e os negros desfilam com os lábios untados com o sangue do animal. Bouckman, o jamaicano, é quem planeja o ataque levando aos homens a notícia da Declaração promulgada na França da libertação dos negros. Armados de paus, os escravos cercaram as casas dos feitores, “gritando para que morressem os amos, o governador, o bom Deus e todos os franceses do mundo” (CARPENTIER, p. 44).
Paulina Bonaparte e seu esposo Leclerc são mandados a São Domingos para conter a revolta os escravos. Interessantemente, o narrador relata essa história ironizando a postura de Paulina, sua paixão pelo trópico e seu envolvimento com o escravo Solimán. Entretanto, Paulina desespera-se e teme o trópico quando Leclerc adoece e morre vítima do “vômito negro” e passa a reverenciar as crenças e ritos mágicos dos negros.
Para os negros, eles venceram as tropas de Leclerc porque
Os Grandes Loas agora favoreciam as armas dos negros. Ganhava a batalha quem tivesse deuses guerreiros para invocar Ogum Badagri guiava a carga de arma branca contra as últimas trincheiras da Deusa Razão. (CARPENTIER, p. 64).
E, assim, os escravos vencem a guerra contra os colonos franceses. “Ti Noel era agora um homem livre. Vivia numa terra onde a escravidão fora abolida para sempre”. (Ibidem, p. 70). Os negros sabiam que o triunfo do líder negro Dessalines devia-se à intervenção de vários deuses do mundo dos Altos Poderes.
Contudo, após a vitória dos escravos, os mulatos ambiciosos, como Henri Christophe, acabaria instalando uma nova escravidão,
Pior ainda [que a dos franceses], pois era infinitamente mais doloroso receber uma paulada de um negro como nós, tão beiçudo e encarapilhado, com o nariz tão achatado como o nosso, tão igual, tão mal-nascido, tão marcado a ferro, provavelmente como nós. (p. 79).
O rei Henri Christophe acabou sendo traído por seus padres confessores. Quisera ignorar a mística africana tentando dar à sua corte um aspecto europeu, mas acabou tendo seu império incendiado pelas forças do Vodu, dos tambores radas, tambores congoleses, os tambores dos Grandes Pactos. “Christophe, o reformador, quisera ignorar o Vodu, formando à chicotada, uma casta de senhores católicos” (Ibidem, p. 93). E agora compreendia que os verdadeiros traidores de sua causa foram justamente os católicos. Christophe acaba se suicidando.
Ti Noel volta à fazenda do seu amo, porém, agora ele a habita como se fosse o dono. Certa manhã, porém, aparece por lá os agrimensores, medidores de terras e dizem que “o chicote agora estava na mão dos mulatos Republicanos, os novos donos da Planície do Norte”. (p. 112).
Ti Noel que não suportaria já velho passar por nova escravidão, passou a metamorfosear-se, como o mandinga Mackandal, em diversos insetos e animais. Entretanto, quanto mais fugia da escravidão, e a cada animal que se transformava caía sob novo jugo. Como formiga, por exemplo, fora obrigado a carregar pesadas cargas “sob a vigilância [das formigas] cabeçudas que muito lhe recordavam o feitor de Lenormand de Mezy, os guardas de Christophe e os mulatos de agora. (p. 113).
Chegaram uns gansos da antiga criação de Sans-Souci e Ti Noel resolveu metamorforsear-se em ganso, pois o considerava um animal esperto que não se sujeitaria à submissão. Contudo, também como ganso fora desprezado: “Deram a entender claramente a Ti Noel que não lhes bastava ser ganso para que acreditasse que todos os gansos os são iguais”. (p. 116).
Ti Noel compreendeu que este repúdio dos gansos era um castigo por sua covardia, pois, Mackandal disfarçava-se de animal para servir aos homens e não para abandoná-los. Ti Noel começou a refletir e acabou notando que o homem
Sofre, espera e trabalha para pessoas que nunca conhecerá e que, por sua vez, sofrerão e esperarão e trabalharão por outros que também não serão felizes, pois o homem deseja sempre uma felicidade muito além da porção que lhe foi outorgada. (p. 117).
Ti Noel concluiu que no reino dos céus não há grandeza a conquistar, pois a incógnita já está solucionada. Mas, no reino deste mundo, o homem “esmagado pelo sofrimento e pelas tarefas, belo na sua miséria, capaz de amar em meio às calamidades, poderá encontrar sua grandeza, sua máxima medida” (p. 117).
Ti Noel gritou aos senhores, dando ordem a seus súditos que atacassem as obras insolentes dos mulatos investidos de poder. E naquele instante, um poderoso vento caiu sobre a Planície do Norte, levando consigo tudo da antiga fazenda no desmoronamento.
E desde então ninguém mais soube de Ti Noel (...) salvo talvez aquele abutre molhado que esperava o Sol com as asas abertas: cruz de penas que terminou por encolher-se e mergulhar nas profundezas de Bois Caimán. (p. 118).
VII. A importância da obra e suas contribuições
A importância de se ler esse tipo de literatura está justamente na resistência que esta exerce frente ao mundo racionalista instrumentalizado, científico e capitalista.
O romance histórico de resistência voltou-se contra a visão universalizante da história segundo um paradigma ocidental, denunciando, desse modo, as falácias desse discurso tido como científico. E, ao travar uma luta contra o esquecimento promovido pelo poder e fazer emergir o passado que havia sido silenciado pelas representações oficiais privilegia a história que, uma vez resgatada, tem em si um potencial utópico – não se encaixa, portanto, na chamada narrativa pós-moderna que se insere no contexto atual de descrença no estatuto científico da história, de que tudo são versões, apenas.
O retorno atual de uma literatura que não está direcionada unicamente a fins comerciais, faz parte do movimento mais amplo de protesto, acirradas com o modernismo, contra a reificação mercantil da obra de arte operada no capitalismo.
Bibliografia:
CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. Trad.: João Olavo Saldanha. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1985.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad.: Galeano de Freitas. Rio de Janeiro> Paz e Terra, 1994.
GORENDER, Jacob. O épico e o trágico na história do Haiti. In Revista Estudos Avançados USP. Vol. 18, n. 50.
JAMES, C.L.R. Os jacobinos negros – Toussaint L’Ouverture e a Revolução de São Domingos. Trad.: ªT. Filho. São Paulo: Boitempo, 2000.
FIGUEIREDO, V. F. O romance histórico contemporâneo da América Latina. Site: http://members.tripod.com/~lfilipe/Vera.html acesso em 10/2004
[1] Graduanda em Ciências Sociais pela FFC/UNESP – Marília, membro do Grupo de Estudos em Cinema e Literatura e do PET/CAPES em Ciências Sociais.
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