15 de ago. de 2009

A GESTÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA EM ESPETÁCULOS DESPORTIVOS: Atividade de Estado em um Fenômeno Complexo, Multifacetado e Dinâmico


por George Felipe de Lima Dantas & Luciano Garrido Porciúncula

Lupus est homo homini non homo (O homem é o lobo do homem)Asinaria, Plauto (254-184aC)Imagem1:http://farm4.static.flickr.com/3285/2539754982_f560a5c501.jpgImagem 2:http://www.dailymail.co.uk/sport/football/article-447008/How-Ultras-ganged-United.html

O episódio de desordem pública ocorrido em sete de dezembro de 2008, na cidade do Gama, Distrito Federal, causou comoção nacional. Ele aconteceu por ocasião do jogo da 38ª e última rodada anual do 'Brasileirão', campeonato nacional de vinte clubes de futebol da Divisão A e em partida da qual resultaria a confirmação do campeão de 2008. A partida no Gama seria entre o São Paulo Futebol Clube e o Goiás Esporte Clube. Probabilisticamente, pelo número de pontos já acumulado, o campeão estava fadado a ser o São Paulo, como de fato o foi, terminando o campeonato em primeiro lugar com setenta e cinco (75) pontos. O Goiás, que ao final do jogo somou cinqüenta e três (53) pontos, terminou o certame em oitavo lugar. Obviamente que, por tal diferença de pontos, a equipe goiana não disputava o título de campeão com o time paulista, mas apenas cumpria um compromisso da tabela de jogos daquela última rodada. O clima, destarte, não era de uma final entre dois contendores de mesmo nível de expectativa em relação ao prêmio função do resultado.O jogo entre o São Paulo e o Goiás foi levado a cabo no Estádio Bezerrão[1], moderna praça de esportes recém-inaugurada na cidade do Gama menos de um mês antes (19 de novembro de 2008), ocasião em que foi realizado um jogo amistoso entre as seleções do Brasil e Portugal. Já no jogo seguinte, entre o São Paulo e o Goiás, ocorreu um grave incidente em que um membro da torcida organizada do clube paulista, denominada de 'Dragões da Real', terminou atingido por um disparo feito por um policial, falecendo quatro dias depois.

O ocorrido foi noticiado e visto por todo o país em imagem televisiva com seqüência quase completa dos fatos. O torcedor, que viria a falecer depois, corre com outros dois membros da mesma torcida organizada na direção oeste/leste de uma pequena via que separa o estádio do shopping local. A cena é mostrada em vídeo em duas tomadas, primeiro com ele (torcedor que viria a falecer)juntamente com outros dois indivíduos, os três correndo, um deles arremessando o que parece ser uma pedra na direção leste. Na seqüência, com os três retornando em direção inversa, um policial corre e aborda um deles, que se separa dos demais, correndo e descendo a escadaria de acesso da via até o shopping. O policial empunha sua arma de serviço, (aparentemente uma pistola 00.40 da polegada ou 10.16 milímetros), disparando-a (muito provavelmente de maneira acidental) quando da aproximação final da abordagem à porta lateral oeste das três portas principais da praça de alimentação do Shopping do Gama. A vítima do disparo cai, ainda orientada, consciente e falando, sendo atendida por outro policial que despe a camisa do uniforme fazendo uma bandagem para conter o sangue que brota do ferimento. A imagem do policial que fez o disparo é de desalento.

A vítima do disparo, ainda que lúcida no momento que sofre o ferimento na cabeça fruto do disparo (conversa com um policial que dialoga com ele enquanto está ao chão sangrando) é socorrida prontamente. Ele virá a falecer poucos dias depois, fruto de complicações, tendo recebido tratamento no prestigioso Hospital de Base de Brasília (HDB), mesmo hospital onde foi tratado o então presidente eleito Tancredo de Almeida Neves, falecido em 21 de abril de 1985 antes da posse.

O jogo, realizado na cidade do Gama, assim aconteceu alternativamente, já que deixou de ser levado a efeito conforme planejado inicialmente, no 'Estádio Serra Dourada', em Goiânia, Goiás, pelo fato da agremiação futebolística daquele estado que cerca o Distrito Federal haver sido punida pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) com a perda de três “mandos de campo” (tendo de deixar de jogar no estádio da sua própria cidade e sem o apoio da respectiva torcida local). A punição se deveu ao fato de um conflito de torcidas havido no Estádio Serra Dourada em dois de novembro de 2008.O episódio que originou a transferência do jogo para a cidade do Gama (menos de 200 quilômetros distante de Goiânia) envolveu torcedores do Goiás e do Cruzeiro, em um jogo no qual o Goiás ganhou pelo placar de três a zero. A aplicação da medida punitiva do artigo 213 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva resultou do fato, pelo lado goiano, de “deixar de tomar providências capazes de prevenir ou reprimir desordens em sua praça de desportos”, desordens essas havidas em dois de novembro de 2008, quando da partida com o Cruzeiro. Já havia precedentes outros, inclusive. A redação do artigo 213, in verbis, vai a seguir:

Deixar de tomar providências capazes de prevenir ou reprimir desordens em sua praça de desportos. PENA: multa de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) e perda do mando de campo de uma a três partidas, provas ou equivalente quando participante da competição oficial. § 1o. Incide nas mesmas penas a entidade que dentro de sua praça de desporto, não prevenir ou reprimir o lançamento de objeto no campo ou local da disputa do evento desportivo, que possa causar gravame aos que dele estejam participando, bem como, sua invasão. § 2o. Caso a invasão seja feita pela torcida da entidade adversária, sofrerá esta a mesma apenação.[2]

O estopim da tragédia ocorrida no Gama foi o conhecido enfrentamento envolvendo membros de torcidas, fora do estádio, mesmo antes do início da competição. Ao que parece, desencadeado por provocações pontuais mútuas (lançamento de rojões e pedradas), nas imediações do estádio, e que depois desaguaram em violência aparentemente randômica e de difícil explicação e controle[3] depois de desencadeadas. O torcedor paulista, protagonista principal da tragédia, foi buscar refúgio no espaço do estacionamento interno do shopping, poucos metros distante do estádio, momento em que foi abordado pelo policial. Isso parece, tipicamente, fazer parte da dinâmica própria dos conflitos entre torcidas antagônicas quando estão próximas e/ou mescladas no meio da rua...

O clima para tanto já havia sido estabelecido, mesmo antes do incidente do qual resultou o óbito do torcedor, conforme notícia da mídia eletrônica que segue abaixo:Um princípio de tumulto provocou corre-corre nas imediações do Bezerrão, em Brasília, horas antes do início da partida entre Goiás e São Paulo. Dois grupos de torcedores, um formado por são-paulinos e outro por esmeraldinos, se encontraram na porta de um shopping center que fica ao lado do estádio. Houve bate-boca, e um homem com a camisa do Goiás atirou um rojão na direção do grupo de são‑paulinos. [...[ Os freqüentadores do shopping ficaram assustados, pois estavam na linha de tiro do rojão. A Polícia Militar agiu rápido e evitou um tumulto maior. Três torcedores do Goiás foram detidos.[4]

Depois disso, no entanto, entre as quatro linhas no interior da recém-inaugurada praça de esportes, tudo saiu a contento – o São Paulo venceu o jogo e saiu campeão do 'Brasileirão', não só pelo resultado que obteve (placar de um a zero contra o Goiás), como também pelos resultados dos outros times, os mais próximos dele em pontuação, mas que não superaram a pontuação dos paulistas enquanto jogava na mesma 38ª rodada do Brasileirão.Vale destacar que o Distrito Federal não tem maior tradição em competições de futebol da Série A (tampouco da Série B), diferentemente de unidades federativas como Rio de Janeiro e São Paulo. Para citar alguns poucos registros em contrário, o Brasiliense e o Gama disputaram a série 'B', tanto em 2008, quanto em anos anteriores. O Distrito Federal Também já sediou uma final da 'Copa Brasil', incluindo o popular Corinthians e houve até mesmo um ano em que Flamengo e Fluminense optaram por jogar no ‘Serejão’ em Taguatinga. Mas em 2008 nenhum time local constava do Brasileirão de 2008. Tampouco Brasília nem a cidade do Gama são sedes ‘costumeiras’ desse tipo de competição entre grandes clubes, menos ainda em jogos de uma rodada final como foi o caso.

Coerente com tudo isso, em história e conseqüente tradição, a polícia ostensiva local tampouco tem exposição e decorrente tradição e ‘manejo histórico’ tático-operacional e corriqueiro das práticas doutrinárias (doutrina equivalendo à consolidação das melhores práticas) no tocante ao manejo de grandes espetáculos desportivos do gênero. O Vice-Governador do Distrito Federal, reconhecendo tais condicionantes, afirmou:

O jogo Brasil X Portugal foi um sucesso. Tivemos elogios da FIFA, do comitê organizador, do embaixador de Portugal. Não houve um incidente. A questão do jogo Goiás X São Paulo, entendo que o sargento, talvez num momento de nervosismo, tenha cometido esse erro. Brasília está pagando um preço alto e vamos nos preparar bem para os próximos eventos. Brasília não tinha enfrentado um conflito entre torcidas e ainda não estava preparada para este procedimento. Foi um erro que todos nós reconhecemos.[5]

E, de fato, o Vice-Governador Paulo Otávio parece correto ao afirmar que o Distrito Federal não detém tradição no manejo de grandes espetáculos futebolísticos e no enfrentamento da violência hoje específica e crescente no transcurso deles. Talvez, paradoxalmente ao que possa parecer ao observador leigo, a sede do governo central, o Distrito Federal, incluindo suas cidades, embora detenham um bom manejo e tradição em relação ao controle de grandes manifestações de natureza político-social, já não parecem ser igualmente proficientes no que tange mega-eventos desportivos. E eles são, obviamente, objetos bastante distintos, ainda que os últimos desses objetos estejam sempre fartamente documentados pela mídia brasileira e estrangeira, de maneira factual, tanto com respeito a precedentes no restante do país quanto no exterior.

As tragédias, próprias da falibilidade humana, infelizmente, também fazem parte dessa faceta da vida social do país e das respectivas práticas, em acertos e equívocos, da gestão da segurança pública.O que aconteceu na cidade do Gama, conforme já ocorrido em outras cidades do Brasil e do restante do mundo (com eventuais variações factuais), faz parte de um fenômeno social e comportamental que, ainda que freqüente, permanece pouco compreendido em suas bases teórico-conceituais, usualmente de trágicas conseqüências. Daí a razão do fenômeno precisar ser mais e melhor estudado e discutido, transcendendo sua expressão meramente factual e midiática.Isso parece ser necessário de empreender com grande urgência (já que vidas estão sempre em jogo...), até para que os instrumentos de controle, depois de melhor conhecidos, possam ser devida e efetivamente mobilizados em prol da segurança pública e da paz social em certames do gênero, quer seja no Distrito Federal como em outras unidades federativas.

Necessário lembrar, também, a pretensão do Brasil em sediar a Copa do Mundo de 2014.Mais que uma paixão nacional brasileira, o futebol é parte de uma cultura de entretenimento de massa, não só no Brasil como também no restante do mundo, constituindo-se hoje em um mega-negócio extremamente lucrativo, além, é claro, de um substrato de cultura e do prazer lúdico de milhões ou mesmo bilhões de pessoas. Os negócios do futebol não se restringem hoje ao respectivo setor produtivo direto de bens e serviços (participação de clubes em bilheterias, rendas de estádios e micro-negócios indiretos deles derivados). Eles possuem rebatimentos políticos, econômicos e psicossociais indiretos tão ou mais importantes. Eles englobam uma vasta gama de valores da cultura e respectiva economia do entretenimento das comunidades onde o futebol é praticado, incluídos, transportes, indústria hoteleira, produção midiática, comércio e valorização imobiliária das comunidades adjacentes aos estádios e até mesmo o chamado Terceiro Setor (entidades não-lucrativas) mantidas pelos clubes e/ou atletas.

A Copa do Mundo, ao menos no Brasil, é um tempo de ufanismo e retomada do orgulho nacional e, ao que parece, o Distrito Federal e sua política local não ficaram alheios a isso. Importante notar manifestações da mídia, quando o estádio da cidade do Gama foi considerado para sediar o jogo entre São Paulo e Goiás:O mando de campo é do Goiás, mas foi a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) quem definiu o palco da partida em que o São Paulo, se vencer o jogo contra o Fluminense, no domingo, vai receber a taça de hexacampeão brasileiro. A partida do dia 7 de dezembro, válida pela última rodada do torneio, foi marcada para o Estádio Bezerrão, no Gama, que há uma semana foi reinaugurado no amistoso em que o Brasil venceu Portugal por 6 a 2. [...] Vitrine do Governo do Distrito Federal para a Copa de 2014, o Bezerrão foi reformado sob um custo de R$ 45 milhões. [...] No clube, há preocupação com prejuízos financeiros, já que o estádio do Gama tem lotação máxima para apenas 20 mil pagantes. O técnico Hélio dos Anjos já defendeu o aumento do preço dos ingressos, para tentar cobrir um possível desfalque nos cofres do clube. [...] A realização do jogo em Itumbiara ou em Uberlândia causaria protestos dos paulistas, por causa da dificuldade logística. Mas. a escolha do Bezerrão, distante apenas 180 km de Goiânia e 30 km de Brasília, teve boa aceitação no clube.[6]

Atletas e torcedores, nessa grande equação política, econômica e social, talvez sejam os mais envolvidos emocional e praticamente no negócio, mas não na sua implicação mais básica – preços de ingressos (que terminaram variando entre 50 e 200 reais no câmbio oficial), senão vejamos por um dos comentários publicados na mídia:O Goiás informou em seu site oficial que os ingressos de arquibancada para a partida decisiva contra o São Paulo custarão R$ 400, vinte vezes mais caros do que o valor normal para os jogos do time goiano no Campeonato Brasileiro. A partida será no próximo domingo, no Estádio Bezerrão, na cidade-satélite do Gama/DF. [...] Gerente de atendimento ao consumidor do PROCON de Goiás, Sara Saeg diz à Rádio L! Que o Ministério Público do Estado de Goiás já recebeu uma denúncia pelos preços abusivos dos ingressos. Sara ainda deixa uma esperança para os torcedores são-paulinos de que o valor das entradas seja diminuído.

[...] "Para nós, essa cobrança é extremamente elevada e já causou um transtorno aqui com a população de Goiás. Encaminhamos a denúncia para Ministério Público do Consumidor que irá procurar a diretoria do Goiás para uma reunião com o intuito de chegar a um acordo em relação ao valor dos ingressos" - explicou a gerente.[7]

Por tal razão, senão mesmo por justiça social, o futebol não poderia envolver ocorrências que resultassem em agressão e violência, muito menos letalidade, nem dentro nem fora das suas praças de esporte. Não foi assim que ele tornou-se a história de sucesso que é. Foi graças a uma paixão popular. Ao contrário disso, ele pode extinguir-se, deixando de ser o que é, e de ter a importância que tem, enquanto expressão cultural do lúdico e do prazer gratuito do jogo pelo jogo, da ‘bola de meia’, praticados em condições as mais precárias por seguidas gerações na maioria das comunidades do país.

Sintomaticamente, em 14 de novembro de 2008, portanto menos de um mês antes do fatídico episódio do Gama, a violência em sua relação com o futebol já houvera produzido mais um incidente, de repercussão nacional. Dele saiu fisicamente lesionado o treinador do Esporte Clube Palmeiras, em um entrevero havido entre aquele dirigente técnico e membros da torcida organizada do seu clube, a 'Mancha Verde', quando o conhecido treinador embarcava no aeroporto de Congonhas da cidade de São Paulo, capital do estado de mesmo nome.

Para entender o contexto “violência versus futebol”, é necessário recorrer a outras áreas de produção de conhecimento, que não apenas a mídia, e sob a luz de disciplinas instrumentais para explicar o fenômeno do comportamento social e da própria violência em nível coletivo (incluindo a “psicologia das multidões”). A esse respeito, é antiga a referencia de Emile Durkheim ao termo “efervescência coletiva”, metáfora dessa trivial manifestação de liberação somática de energia físico-química aplicada simbolicamente aos efeitos de grandes eventos religiosos, desportivos, carnavais e distúrbios produzidos por uma turba (“multidão instantânea”). Esse borbulha” faria com que as pessoas atuassem de maneira distinta da que atuam em situações normais do seu cotidiano. Motta (2005, p.52-53)[8], elaborando sobre a “efervescência durkheimiana” e o futebol, observa a esse respeito:

No futebol, praticamente todos os espectadores estão ligados emotivamente a uma equipe, de modo que a carga de sentimentos ativada pelo jogo é imensa, equivalente a grandes mobilizações populares, revoluções, facções guerreiras como gangues, pelotões de soldados marchando embalados por um hino triunfalista. [...] F. Alberoni (1990) nas suas comparações entre o enamoramento de duas pessoas e os movimentos coletivos nas sociedades, cita E. Durkheim, cujo comentário sobre os estados de efervescência coletiva indica o seguinte:

O homem tem a impressão de estar dominado por forças que não reconhece como suas; forças que o arrastam e ele não domina”. [...] A paixão pelo clube e o contexto competitivo do jogo de futebol podem induzir os torcedores a um fervor incontrolável, uma mobilização de energia extraordinária que precisa ser bem conhecida e controlada. São forças agressivas e eróticas, algumas nítidas, outras embaçadas, provocando as duas facções das torcidas simultaneamente. [...] As atitudes mobilizadas pelos impulsos de agressividade são muito mais evidentes e explícitas. Qualquer observador capta isso, pois o torcedor xinga, reclama, grita, ofende os árbitros, blasfema e chega, por vezes, aos ataques físicos, á truculência sem bloqueios.

O que existe hoje de mais contemporâneo e inclusivo nesse sentido, trata-se de um fenômeno genericamente denominado de hooliganismo, em cuja panóplia de objetos de estudo está incluída não só a prática de esportes, mas também a dinâmica própria dos comportamentos coletivos. E deles fazem parte a violência, a desordem e a própria criminalidade peculiar a tal ambiente.O dicionário e guia de pesquisa The Language of Psychology, define hooliganismo como um tipo de comportamento humano desafiante e destrutivo. O termo tem sido freqüentemente vinculado pela mídia com fanáticos ingleses de clubes de futebol (soccer na acepção anglo‑saxônica) ou, alternativamente, com comportamentos de natureza análoga e expostos por torcedores ou fãs (expressão intuitivamente simpática, mas derivada da abreviatura de fanáticos, e que traz conotações não tão igualmente simpáticas...) de futebol ou de qualquer outro esporte.

O tema, no contexto da violência social, recebe atenção regular da mídia, ainda que, segundo a literatura especializada, ocorra muito mais em função da gênese, processos, fatos e ocorrências não necessariamente relacionados com o futebol propriamente dito. Ele seria, essencialmente, mais uma expressão da violência contemporânea nela própria, manifesta no contexto do esporte, mas não necessariamente derivada do esporte propriamente dito.Exatamente pela característica multifacetada do fenômeno da violência de grandes coletividades, outras fontes, diferenciadas das pertinentes à indústria midiática, apontam a ambigüidade com que a expressão “hooliganismo” é hoje utilizada e a necessidade de qualificá-la de maneira específica sempre que aparecer referida genericamente.

Ainda que o termo esteja amplamente relacionado com a violência, desordem e até mesmo criminalidade produzidas no contexto das competições futebolísticas ou do esporte em geral, ele pode traduzir algo mais espontâneo e não apenas deliberado em relação ao desporto.Assim, o hooliganismo pode expressar-se de maneira espontânea, geralmente de baixa intensidade, ao envolver conflitos entre torcedores (anônimos e que saem das próprias multidões) que estão nos estádios de futebol ou em volta deles, em jogos fora ou na própria sede geográfica das agremiações desportivas engajadas em tais certames desportivos.

Já na forma deliberada, envolve gangues (ou turmas de valentões criadores de caso), agregados aos torcedores de um determinado clube de futebol, confundindo-se com eles, da mesma forma que o fariam, e de fato fazem, em relação a qualquer outro time, com o fito deliberado de produzir violência, desordem e cometer crimes. Certas vezes bem antes dos jogos, dentro ou fora dos estádios e até mesmo distante dos locais onde os certames serão realizados.

A expressão hooliganismo é de origem anglo-saxônica, não havendo notícia, entretanto, de estar incluída em tipologia da terminologia penal de países desta ou daquela cultura. De acordo com referências as mais diversas, tudo leva a crer que o termo foi criado pela própria mídia dos países de língua inglesa, ou pelo menos assim identificado em sua pertinência com a violência dos estádios, mais especificamente na Inglaterra, parte do Reino Unido (Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte). Ele emerge claramente ao final da década de 1960, intensificando-se como tal nas duas décadas seguintes. Talvez, por isso mesmo, o hooliganismo também seja referido como a 'doença inglesa'. Episódios de desordem pública, violência e morte, tanto no Heysel Stadium de Bruxelas, Bélgica quanto no de Hillsbourough de Sheffield, Inglaterra, são considerados emblemáticos da emergência mais cruenta do fenômeno do hooliganismo.

Na partida realizada no estádio Heysel (29 de maio de 1985) resultaram 39 mortes e centenas de feridos (predominantemente italianos), em um jogo final de futebol da Copa Européia de 1985, disputado entre o Liverpool (inglês) e o Juventus (italiano). Já no certame levado a cabo no Hillsborough (15 de abril de 1989), a contagem de mortos chegou a 96, em partida futebolística semifinal entre o Liverpool e o Nottingham Forest.

Mas o futebol não é apenas inglês ou brasileiro – hoje ele é quase que universal, com a Copa do Mundo de 2006 sendo tida e havida como o maior espetáculo da terra, com audiências presenciais e remotas contadas aos milhões ou bilhões de indivíduos. Esporte e futebol possuem um significado bem maior do que possa sugerir o senso comum. Isso fica bem posto por Murad (2007, p.18)[9] ao afirmar:

Há uma tendência na sociologia que afirma que o futebol (o esporte, em geral) [...] é um ritual de “violência simbólica” e, por isso, tem um sentido civilizacional (Elias, 1994a), pois evita e/ou esvazia a violência direta, material. Uma espécie aproximada, talvez, de “solução ritual do conflito”. [...] E seria esse frágil limite, entre o real e o simbólico, que ajudaria a explicar o fenômeno do conflito, da agressão, da violência no futebol. Potencialmente essa estaria sempre pronta a ultrapassar as fronteiras da ordem, da lei, das regras e do controle social. [...] Sua manifestação ficaria a depender, tão-somente, de algum estímulo externo: anomia[10], impunidade, descaso das autoridades, conexão com outros níveis de agressividade direta (drogas, xenofobia, racismo) ou indireta (pobreza, desemprego, exclusão)[11].

Se o futebol não é hoje apenas inglês (lá se deu apenas sua origem...) ou brasileiro (gentílico do país onde é praticado secularmente por boa parte da população), mas quase que universal – distinto de outras formas de entretenimento coletivo (sob formas culturalmente isoladas da “comunidade global”: touradas, lutas de sumô, partidas de hockey no gelo, etc.), o futebol é reconhecidamente uma forma de entretenimento mundial, porquanto atividade diferenciada do “trabalho” (ainda que trabalho ele o seja para alguns daqueles diretamente envolvidos na “indústria” respectiva). E a violência parece um ‘corpo estranho’ de um fenômeno essencialmente de entretenimento quase universal. Já aí, é interessante recorrer a uma obra didática e inclusiva de Baldy dos Reis (2006, p.xvi) [12], no sentido de tentar melhor compreender e explicar a violência em seu significado antitético e antiestético em relação a uma expressão de entretenimento buscada por milhares de fãs presentes aos estádios e por milhões ou bilhões de telespectadores que assistem e acompanham aqueles mesmos jogos de futebol remotamente em seus televisores:

A exclusão da violência, que decorre da essência (a esportividade) do jogo, por isso mesmo já consagrado na linguagem comum e corrente, que cunhou expressões como “por esporte”, “levar na esportiva”, “espírito esportivo”. Quem faz algo “por esporte” o faz por puro prazer, para se divertir, para passar o tempo, sem objetivo utilitário, sem preocupação de vencer, de se impor, de dominar. “Levar na esportiva” significa não cair em provocações, reagir com bom humor. Tem espírito esportivo quem sabe ganhar ou perder com classe, com elegância. [...] À vista do exposto, como entender a irrupção da violência no futebol, tal como tem ocorrido com as torcidas organizadas? Evidentemente, já que esse fenômeno é inexplicável, será necessário buscar sua origem fora do âmbito propriamente esportivo. E uma vez que o esporte, como toda relação humana, é uma relação social e histórica que só existe em condições determinadas, é preciso buscar na forma da organização social em que vivemos as raízes da violência das torcidas de futebol.

Se as noções do que sejam a violência[13] e o futebol[14] são quase intuitivas, já não o é a do que seja uma torcida organizada e seus fanáticos[15]. Torcer envolve um estado emocional, essencialmente individual e em que se deseja ansiosamente uma articulação técnico-tática futebolística de onze indivíduos, ao limite de que essa articulação (ou jogada), considerada até mesmo esteticamente bela (na apreciação de alguns), que por fim seja capaz de ser materializada em um tento (gol ou ponto), ou quase a sua materialização (já agora na apreciação de todos). O contrário é desejado em relação ao time opositor, por bela que seja a julgada. Aplauso, enlevo e gozo na primeira situação, silêncio, alívio e pesar na segunda...

Mas 'torcer organizadamente' (supostamente o objetivo explícito ao ser semanticamente expresso em torcida organizada) certamente inclui algo mais do que apenas o ato individual e solitário de torcer. Na busca do entendimento do que seja uma torcida organizada, há que deter primeiro o entendimento do que seja um fã ou torcedor. As expressões são diferenciadas qualitativamente. Daí o recurso à literatura e como o termo possa ser definido diferenciadamente. Vários são os autores e citações a esse respeito, contidas no documento comercial Amberlight -- Fan Psychology: Designing Effective Fans Services Online, texto corporativo online sem data ou autoria pessoal citada[16].

A Psicologia Social tem estudado o comportamento dos fãs (e particularmente fãs de esportes) [...] Para o propósito deste documento, um fã é definido como um seguidor entusiástico de um esporte ou entretenimento. O esporte, time ou pessoa sendo apoiada será referido como alvo. [...] Um fã é mais do que apenas um mero expectador. Fãs possuem um vínculo psicológico com o alvo [...] Existe evidencia de que fãs altamente identificados com seus respectivos alvos sentem emoções intensas com relação à performance dos alvos por eles escolhidos. [...] como também uma gama de benefícios psicológicos de longa duração [...] Isso sugere que muitos fãs vêem o alvo como um importante aspecto das suas vidas e até mesmo um componente crítico da sua identidade social [...] Na prática, o nível de identificação é possível de ser um continuo que vai de zero até o fanatismo [...].

Mas se a definição de fã ou torcedor pode vir de várias vertentes, na de torcida organizada em diferenciação mais qualitativa e menos quantitativa, a variedade de vertentes já não é tão pródiga, ortodoxa e permanente. Tome-se como exemplo a de Santos Diógenes (2003, p.104)[17]:

A torcida organizada aparece entre os seus integrantes, pontuada por um imaginário ambíguo, condensador de referentes aparentemente contraditórios. Através da torcida é possível pensar que a cidade não obedece aos ritos e da ordenação para ela planejada. A conjunção entre Marte e Vênus, entre coisa boa e ruim, nos projeta diante de um cenário denso, onde os bonzinhos malvados enunciam que a cidade ordenada, zoneada está em guerra. [...] Com a agressão dos hooligans aparece uma mudança de escala, de natureza, de significação: a morte pode ser o cortejo da desordem, da destruição. É a exploração de uma situação, a presença de uma massa dividida pela paixão nas partidas de futebol, de um jogo cujo movimento e cuja linguagem (as metáforas) fazem um simulacro da guerra, de uma religião esportiva que é também a do corpo e que dá forma ao paganismo moderno, que impregna a sociedade atual (BALANDIER, 1997, p. 211).

A ciência comportamental aplicada ao fenômeno dos espetáculos desportivos

É plausível considerar que a torcida organizada absorve o próprio espírito competitivo do esporte, de modo invertido e sectário, transpondo-o para uma dimensão coletiva onde os torcedores organizados diferenciam-se dos torcedores individuais (o todo não é a mera soma das partes) por um componente qualitativo diferenciado e perigoso. Alguém que faz parte de uma 'Mancha Verde', não é um torcedor qualquer, um mero apreciador do esporte. Diferentemente, ele estabelecerá uma relação identificatória com seu time de uma forma muito mais total, impregnada de um amor exaltado, de uma paixão arrebatadora, sentimentos quiçá jamais expressos e cultivados em um torcedor comum, individualizado, sem que parecesse patético e despropositado. Porém, onde está o amor, lá estará também o ódio, ainda que de forma latente.

Essa sinergia de atitudes efervescentes, albergada no ambiente coletivo das torcidas organizadas, parece o caldo de cultura ideal para erupções violentas, sectárias, xenófobas, racistas, intolerantes, dirigidas ao torcedor adversário.Assim como ocorre nas seitas fundamentalistas religiosas, nos partidarismos políticos de viés totalitário, em todas essas agremiações a adesão incondicional é exigida, e em penhor dela se pode cometer os mais variados desatinos, nos quais o paroxismo é sempre a demonstração cabal de uma entrega absoluta, de uma devoção incomum, espécie de fusão ao corpo místico, representada pela figura da torcida organizada ou, mutatis mutandis, no âmbito político, pelo ditador (Fuhrer, Il Dulce) e no religioso pelo profeta. A ‘torcida organizada’ pode guardar esse paralelo: uma espécie burlesca e postiça de uma seita religiosa (fã, fanatismo). Nessas linhas, o futebol, na modernidade, pode ser uma espécie de ‘ópio dos torcedores’. Assim como Marx referiu que a religião seria ‘o ópio do povo’ e Paul Johnson que o comunismo ‘o ópio dos intelectuais’. A torcida organizada poderia ser então (jocosamente referindo) uma agremiação de opiômanos dispostos a quaisquer desatinos.

Notas:[1] O Nome “Bezerrão” foi dado em homenagem ao primeiro administrador do Gama, Valmir Campelo Bezerra, sob a administração de quem o estádio foi construído em 1977 em sua primeira versão.

[2] BRASIL. Ministério do Esporte. Código Brasileiro de Justiça Desportiva.

[3] Teoria do Controle (Control Theory) - teoria que vê o crime como o resultado de um desequilíbrio entre impulsos na direção da atividade criminal e os controles para sua contenção. Os seus proponentes sustentam que criminosos são seres racionais que irão agir para maximizar sua própria gratificação, a menos que sejam incapazes de assim proceder em função de controles físicos ou sociais.

[4] Confusão na porta do Bezerrão: PM prende três torcedores esmeraldinos: rojão é atirado na direção de torcedores são-paulinos, assustando freqüentadores de um shopping que funciona ao lado do estádio. Fonte: Globoesporte.com -- 07/12/08 - 14h17 - Atualizado em 07/12/08 - 16h49[5] Jornal de Brasília. Política, p.20. Brasília, domingo, 21 dez. 2008.

[6] Fonte: O Estado de São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2008. São Paulo faz último jogo no Bezerrão Clube paulista pretendia enfrentar o Goiás no Engenhão, mas CBF veta -- Amanda Romanelli e Giuliander Carpes.

[7] Fonte: SPNet 12 ANOS - O Termômetro da Torcida Tricolor! - Novidades -- PROCON denuncia preços dos ingressos no Bezerrão - 02/12/2008 18:27 - por RICZZO -- Bilhetes para Goiás x São Paulo podem ficar mais baratos para a 'final' do Brasileirão. Disponível em: http://www.saopaulofc.com.br/news.php?cod=36912%20-%2032k%20- Acesso em 24 dez 2008.

[8] Gol, guerra e gozo o prazer pode golear a violência. Por Joaquim Zailton B Motta, Publicado por Casa do Psicólogo, 2005.

[9] MURAD, Maurício. A violência e o futebol: dos estudos clássicos aos dias de hoje. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

[10] Anomia (Anomie) – Substantivo: (1) Estado pessoal de isolamento e ansiedade resultante da perda do controle social e regulação; (2) Perda de padrões morais em uma sociedade. A anomia como “desordem pessoal”. O sociólogo pioneiro francês Emile Durkheim utilizou esta palavra para enfatizar as causas do suicídio.

[11] Exclusão Social (Social Exclusion) – Resultado de privações múltiplas que impedem indivíduos ou grupos de participar completamente na vida econômica, social e política da sociedade onde eles estão localizados. Disponível em: Acesso em: 24 dez. 2008.

[12] REIS, H. H. B. Futebol e violência. 1. ed. Campinas: Armazém do Ipê/FAPESP, 2006.

[13] Violência (Violence) – (1) Exerção de força física de maneira a lesionar ou abusar (como em situação de guerra efetuando uma entrada ilegal em uma residência); (2) uma instancia de tratamento ou procedimento violento; (3a) Ação de força intensa, turbulenta ou furiosa e freqüentemente destrutiva ; (3b) Sentimento ou expressão veemente: fervor. Também uma instancia de tal ação ou sentimento; (3c) uma confrontação de interesses que seja perturbadora: discordância; (4) alteração ou desfazimento (como de palavras ou sentido delas na edição de um texto). Disponível em: www.merriam-webster.com/dictionary/violence>. Acesso em: 24 dez. 2008.

[14] Futebol (Soccer) – De acordo com o Merrian Webster Dictionary, é um Jogo travado em um campo por dois times de 11 jogadores cada, com o objetivo de propelir uma bola redonda no gol do oponente, chutando ou atingindo-a com alguma parte do corpo, com exceção das mãos e dos braços.

[15] Fã (Fanatic) – De acordo com o Merrian Webster Dictionary, etimologicamente derivado do latim fanaticus, expressão que equivale àquele que está inspirado por uma divindade, sob estado de frenesi do templo de fanum. Em acepção moderna, alguém marcado por excessivo entusiasmo e freqüentemente intensa devoção desprovida de senso crítico.

[16] www.amber-light.co.uk/resources/whitepapers/designing_fan_services.pdf -[17] DIÓGENES, Glória Maria dos Santos. Itinerários de corpos juvenis: o baile, o jogo e o tatame. São Paulo: Annablume, 2003.

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