19 de dez. de 2010

Pesquisa sobre Vitimização pelo Crime

Fonte da imagem: http://www.tacticaldirect.com/images/1CrimeVictim.jpg


por George Felipe de Lima Dantas

em 19 de dezembro de 2010

Resultados de Pesquisa sobre Vitimização pelo Crime: Insegurança e Falta de Informação Sistemática

A seção “Editoriais” do noticiário eletrônico UOL publicou matéria que leva o título de “Dados de insegurança”, tratando dos resultados de mais uma “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios” (PNAD) realizada pelo “Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística” (IBGE). A parte da pesquisa noticiada, versando especificamente sobre segurança, está baseada em dados de 2009 colhidos pela PNAD/IBGE em 2010, sendo intitulada “Características da Vitimização e do Acesso à Justiça no Brasil”.

Trata-se de mais uma PNAD, espécie de enquete (ou pesquisa amostral) que tipicamente utiliza a técnica de amostragem por domicílios, abordando, dentre outros temas, as percepções de parte da população sobre a questão da segurança. Aplicada sobre uma amostra representativa da população (estratificada por domicílios), os resultados/percepções colhidas por mais essa PNAD são generalizáveis para a população do país como um todo.

Não menos importante que os resultados específicos sobre o tema da segurança, a matéria do UOL sugere que a PNAD indica falta de informação qualificada e sistemática em prol da formulação das políticas de segurança pública do país. Em um momento histórico como o atual, marcado por uma séria crise na segurança pública do Rio de Janeiro (com potencial semelhante em outras unidades federativas), é digna de nota a questão da informação válida, confiável e constante sobre o crime, criminosos e questões conexas. E isso não pode ser tido apenas como algo relativo a “crises locais”, já que, sabidamente, questões como a do “crime organizado”, potencialmente se desdobram ao longo de mais de uma região (de um mesmo continente ou de vários deles), inclusive com a chamada “migração espacial do crime”.

O método de abordagem eleito pela PNAD foi o indutivo, já que tem por base a análise e generalização de dados de respostas diretas dos entrevistados sobre diferentes aspectos da temática da vitimização pelo crime e da problemática do segurança e acesso à justiça. Os métodos de procedimentos abrangeram o método estatístico (materializado por taxas numéricas percentuais), o comparativo (cotejando as taxas de 1988 com as de 2009), histórico (comparando a “série histórica 2009”, a mais atual disponível, com outra do passado, correspondendo ao ano de 1988 -- abarcando um hiato histórico de 20 anos) e tipológico (abrangendo categorias de variáveis referentes à vitimização pelo crime e questões de acesso à justiça na percepção dos entrevistados, com base nos 12 meses imediatamente anteriores à realização da pesquisa).

Estudos como o da PNAD/IBGE possuem o atributo específico de revelar a “face oculta” dos fenômenos abordados e que, por diferentes razões, não pode ser retratada pelo estudo de bases de dados de registros oficiais. Isso decorre do fato, no caso da segurança pública, que vítimas do crime e/ou com acesso prejudicado á justiça, não possam, ou até mesmo não queiram, consignar registros oficiais junto aos órgãos respectivos (polícias e poder judiciário). Tal situação pode gerar uma “subnotificação” de crimes sofridos, produzindo a chamada “cifra negra”.

A descoberta de “números ocultos” ou de uma “cifra negra”, diferenciada “para mais” dos “números oficiais” sobre um mesmo fenômeno, é algo que pode ser observado na segurança pública não só do Brasil, como também de outros países do mundo. A cidadania deixa de consignar registros oficiais por diferentes razões, desde o desconhecimento dessa possibilidade, passando pela apatia, até mesmo por abranger diferentes sentimentos e/ou receios como o medo e a descrença na efetividade dos resultados obtidos com a consignação de registros oficiais (caso dos registros de “boletins de ocorrência” das polícias).

O que parece revelado objetivamente ("em números") pela pesquisa amostral de “Características da Vitimização e do Acesso à Justiça no Brasil”, não permite maiores inferências históricas, já que seus resultados somente podem ser comparados com um único conjunto de resultados homólogos obtidos anteriormente, no já longínquo ano de 1988. Com limitações de comparação e cotejo histórico, ainda assim, a PNAD/IBGE aponta que 47,2% dos entrevistados indicam não se sentir seguros onde vivem, taxa que sobe para mais de 50% quando considerados os entrevistados que vivem em áreas tipicamente urbanas. Já a comparação histórica da vitimização por roubos e furtos aponta uma taxa de 7,3% dos entrevistados em 2009, em relação a uma taxa de 5,4% em 1988. A “não-notificação” de crimes sofridos em 2009 é afirmada por mais da metade do número de entrevistados, com 36,4% deles justificando tal atitude por não acreditar nas instituições policiais e 19,5% por medo da própria polícia e/ou dos autores dos crimes sofridos.

Em outros países, caso dos Estados Unidos da América (EUA), o chamado “Relatório Uniforme do Crime” (UCR -- Uniform Crime Report) vem sendo compilado pelo governo federal daquele país desde 1930, revelando a “situação de registros de crimes violentos”, não só de cada ano anterior, como também do “quadro acumulado” do qüinqüênio anterior (e dele para trás, até o ano inicial de registros em 1930). Tal relatório é produzido a partir de informações voluntariamente enviadas pelas polícias do país a órgãos pertencentes ao equivalente norte-americano do Ministério da Justiça do Brasil. A “cobertura” obtida por essa metodologia e técnica de pesquisa abarca uma área geográfica de cerca de 97% do território norte-americano. Nesses 80 anos de UCR, uma pequena lista de “delitos índice”, para fins de estudo/análise foi desenvolvida e mantida quase que inalterada, com a única exceção de haver incluído um delito a mais (incêndio), aumentando de sete para oito o número de “delitos índice”.

Já a “Survey Nacional de Vitimização pelo Crime” (NCVS -- National Crime Victimization Survey), elaborada pelo “Departamento do Censo” dos EUA (parte do “Ministério do Comércio” daquele país), é um estudo ao qual se assemelha o PNAD sobre vitimização e acesso à justiça elaborado pelo IBGE. A NCVS foi estabelecido nos EUA em 1973, portanto, já se estendendo hoje ao longo de quase quatro décadas. Ela é aplicada em cerca de 49 mil domicílios e tem uma abrangência populacional da ordem de 100 mil pessoas (incluindo os maiores de 12 anos residentes/entrevistados em cada domicílio).

Se a NCVS já retrata a vitimização pelo crime por si só, quando cotejado com o UCR (e seus respectivos registros oficiais), enseja uma visão “interespecífica” dos “crimes efetivamente sofridos” (levantados na pesquisa de vitimização) e dos “crimes oficialmente registrados” (determinados conforme as bases de dados de registros oficiais)...

A survey (pesquisa amostral) norte-americana tem quatro objetivos básicos: (i) produzir informação detalhada sobre vítimas e conseqüências dos crimes sobre elas; (ii) estimar o número e tipos de crimes que não são notificados às autoridades pela cidadania (“cifra negra”); (iii) prover medidas uniformes (“métricas”) da incidência de tipos especificamente selecionados de crimes e; (iv) permitir comparações entre diferentes séries históricas de dados (considerando a dinâmica da temporalidade do fenômeno criminal), bem como ensejar comparações entre diferentes regiões geográficas afetadas pela criminalidade (espacialização ou mapeamento do fenômeno criminal).

A necessidade de estudos abrangendo a espacialização do fenômeno criminal (incluindo “mapas do crime”) está também relacionada com sua comprovada expressão contemporânea “translocalizada”. Ou seja, trata-se de um fenômeno que pode estar desdobrado ao longo de diferentes locais ou áreas de circunscrição, diversos municípios, unidades federativas distintas, regiões nacionais diferenciadas, ou até mesmo em dois ou mais países. Talvez, por isso mesmo, a realização de estudos envolvendo uma "epidemiologia criminal", como é o caso nessa PNAD/IBGE de 2010, implique na sua centralização sob a égide do governo federal.

A matéria sugere, acertadamente, que falta sistematização e tradição no Brasil acerca da realização de estudos como o recentemente divulgado pelo IBGE. Aponta deficiências de sistematização da informação em nível municipal e das unidades federativas, o que parece não ser o caso, dado a natureza translocalizada de um fenômeno nacional (e até mesmo internacional). No Brasil, ao que parece, a situação de irregularidade no estudo do crime começa pelos próprios índices, já que não há uma constância histórica em termos de que delitos devam ser regularmente indexados e estudados. Em tal circunstância, talvez bastasse um pequeno número de delitos efetivamente representativos do fenômeno...
Os poucos delitos considerados de inclusão essencial e permanente na NCVS dos EUA estão listados segundo duas categorias de vitimização, (i) crimes contra a pessoa (quatro deles) e (ii) crimes contra a propriedade (também quatro). Na primeira categoria estão contidos os delitos de (i) estupro e outros ataques sexuais, (ii) roubos, (iii) assaltos e, (iv) pequenos furtos (basicamente resultantes da ação de “batedores de carteiras”). Já a segunda categoria abrange (i) arrombamentos, (ii) furtos em geral, (iii) furtos de veículos e (iv) vandalismo.

A matéria do UOL aponta muito propriamente uma relação entre a existência de indicadores confiáveis e avanços na área de saúde pública do Brasil. Elabora, da mesma forma, sobre os indicadores para formulação de políticas públicas na educação. Finalmente, afirma que “Não é razoável pretender que a segurança pública possa prescindir do mesmo recurso”, o que parece de fato ocorrer.

Talvez seja próprio lembrar que, no Brasil, até o ano 2000 o governo federal não esteve mais próximo das questões nacionais de segurança pública, “debutando” com seu “Plano Nacional de Segurança Pública” daquele mesmo ano, sob o choque nacional do episódio envolvendo a tomada de reféns do “Ônibus 174” no Rio de Janeiro. Desde então, começa a esboçar a constituição de bases de dados nacionais agregados sobre o crime, criminosos e questões conexas.

A grande questão é se essas bases estão sendo constituídas objetivamente com o “olhar da gestão da atividade-fim” e das necessidades prementes de informação para a formulação de políticas públicas válidas, confiáveis e oportunas para o setor. Tomara que não seja necessário esperar muito para verificar “que sim ou que não”...

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