25 de set. de 2009

--A Cultura Ocupacional Policial Anglo-Americana--




Fontes das imagens:
http://www.historybytheyard.co.uk/MPImages50/MP133_Great_Scotland_Yard.jpg
http://jormarinho.files.wordpress.com/2007/10/new_scotland_yard.JPG?w=150&h=180


--A Cultura Ocupacional Policial Anglo-Americana1--
Inferências, Referências e Revisão da Literatura: Uma Visão Brasileira

Professor Doutor (“The George Washington University”) George Felipe de Lima Dantas -- Núcleo de Estudos em Segurança Pública e Defesa Social (NUSP) -- UPIS – Faculdades Integradas -- Brasília, Distrito Federa, Brasil.

-- Janeiro de 2005 --

A característica que melhor contribui para fazer do homem um ser tão diferente do resto dos animais é a de que os padrões da vida humana se fixam na “cultura”; quer dizer: em padrões de comportamentos aprendidos de uma maneira social, mediante a assimilação de símbolos que expressam algo determinado.i

Baseado no artigo “Occupational Culture” (Cultura Ocupacional) de Peter Manning -- Professor do Departamento de Sociologia e Psiquiatria da Universidade Estadual de Michigan, EUA, Centro de Estudos Sócio-Jurídicos do Wollson College de Oxford, Reino Unido.

Introdução

As organizações ocupacionais utilizam processos peculiares para sua gestão. Isso inclui a determinação de um rumo, direção geral ou visão, missão e estratégia, resultantes de uma dinâmica de fatores condicionantes com origem tanto interna quanto externa. As organizações brasileiras de segurança pública e defesa social, atuando com uma cultura toda própria, sofrem múltiplas influências, tanto internas ou nacionais quanto externas ou estrangeiras, as quais irão definir, de alguma maneira, os padrões e a qualidade dos serviços que elas prestam. A delinqüência é um fenômeno condicionante da própria existência dessas organizações.
Considerando a atual prevalência do fenômeno do crime e da violência, freqüentemente com expressão transnacional, é necessário conhecer a cultura ocupacional dos agentes brasileiros da segurança pública e de seus homólogos estrangeiros, bem como suas melhores práticas, para uma igualmente melhor compreensão de rebatimentos locais daquele mesmo fenômeno adverso.

O objetivo deste trabalho é apresentar, bem como reduzir e estender à realidade brasileira, quando pertinente, o conteúdo do artigo 'A Cultura Ocupacional Policial' de Peter MANNINGii, produzido originalmente com fulcro nas organizações policiais britânicas e norte-americanas. É aqui também procedida uma revisão das referências bibliográficas citadas por aquele autor, incluindo uma rápida identificação geral dos autores por ele citados. O detalhamento do significado de certas expressões (incluído em notas de rodapé), visa facilitar sua compreensão por leitores não-acadêmicos, especificamente os agentes brasileiros da segurança pública.2

1 Anglo-americano: relativo ao Reino Unido e aos Estados Unidos da América (EUA).
2 Os agentes da segurança pública, aqui referidos, incluem os agentes de trânsito, agentes prisionais ou guardas penitenciários, bombeiros, guardas municipais e policiais de maneira geral.

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Sociologia e Cultura Ocupacional

A Sociologia produz várias perspectivas diferenciadas sobre o mundo, motivando a produção de novas idéias e críticas sobre velhos fenômenos. Ela também oferece um amplo leque de metodologias e técnicas, aplicáveis ao estudo de praticamente todos os aspectos da vida social: criminalidade, delinqüência (...) e questões relativas a conflitos e paz social. Abordando questões cruciais do nosso tempo, a Sociologia se constitui em uma ciência (...) sempre em expansão, cujo potencial é cada vez mais explorado pelos que concebem programas e políticas públicas. Os sociólogos buscam compreender a desigualdade social, os padrões de comportamento social, as forças promotoras de mudanças na sociedade, e a elas resistentes, bem como os sistemas sociais e seu funcionamento. iii

A cultura ocupacional policial anglo-americana, tema tratado por MANNING (1995) no artigo que constitui o marco teórico deste trabalho, engloba relações entre indivíduos, agentes da segurança pública e da sociedade em geral, e entre eles e diversos outros grupos, incluindo, mas não se restringindo apenas àqueles que representam as instituições da lei e da ordem. O Estado e a Sociedade são entidades gerais de uma grande rede referencial onde ocorrem os fatos sociais que dizem respeito às questões da segurança pública, seara do estudo da cultura ocupacional policial referida por MANNING. Assim, os profissionais da segurança pública e outros indivíduos, grupos, organizações, instituições e a sociedade em geral, são agentes ativos nas múltiplas relações de interesse no estudo da cultura ocupacional dos agentes da segurança pública.
Consideradas de modo geral, tais relações, ou 'teia' relacional, tanto no âmbito dos indivíduos quanto dos grupos, bem como entre indivíduos e grupos, materializam a existência social dos profissionais da segurança pública. Segundo FERREIRA iv, “As questões que envolvem a teia de relações existentes entre os indivíduos na vida coletiva configuram (...) o objeto de estudo da Sociologia”. A esse respeito, TOMAZI (Apud FERREIRA) v aponta:

São essas situações sociais que interessam a Sociologia. Situações cujas causas não são encontradas na natureza ou na vontade individual, mas antes devem ser procuradas na sociedade, nos grupos sociais ou nas situações sociais que as condicionam. É tentando explicar essas situações que a Sociologia colocará como básico o relacionamento indivíduo e sociedade. A Sociologia volta-se o tempo todo para os problemas que o homem enfrenta no dia-a-dia de sua vida em sociedade.

MANNING vi é autor de extensa obra sobre a cultura ocupacional policial, referindo no artigo que serve de base para este artigo sete de seus próprios trabalhos sobre o tema (obras editadas entre 1970 e 1980). No artigo que serve de referência para este trabalho, o autor de referência observa que o conceito de cultura tem uma longa história nas ciências sociais. Tais ciências, entretanto, sofreram variações ao longo do tempo, fruto da influência desta ou daquela 'escola de pensamento' dominante. Assim, também variou e foi aperfeiçoado o conceito de cultura, o que não escapa ao olhar atento daquele mesmo autor. Igual que com outros conceitos das ciências sociais, caso de conflito, norma, ocupação, papel, grupo, coesão,

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solidariedade e comportamento coletivo, a expressão “cultura” pode apresentar significados bastante variáveis.

Conforme refere MARCONI e PRESOTTOvii, “Para alguns, cultura é comportamento aprendido 3; para outros, não é comportamento, mas abstração do comportamento 4; e para um terceiro grupo a cultura consiste em idéias” 5. No caso brasileiro, a trilogia de significados acima apontados parece poder ser aplicada, em diferentes circunstâncias, ao que seja a cultura dos agentes da segurança pública. Assim aconteceria, respectivamente, no caso da realização de uma prisão em flagrante (comportamento aprendido), em relação ao efeito muitas vezes intangível do patrulhamento realizado pela polícia ostensiva (abstração do comportamento) e, por derradeiro, com relação ao entendimento (ideologia) que atribui às instituições de segurança pública uma função essencialmente conservadora, porquanto voltadas para a manutenção do status quo e, conseqüentemente, do poder constituído.

Com todas as eventuais questões teóricas existentes, algumas vezes mesmo contraditórias, parece existir uma noção intuitiva do que seja cultura, com ela estando disseminada de modo generalizado e difuso no imaginário popular. Isso pode ser verificado em função do uso freqüente do termo, sob a égide do senso comum, e menos pela conotação científica que a expressão possa ter. É comum a alusão popular a expressões como cultura militar, cultura criminal, cultura policial, etc. Entretanto, o entendimento do que seja cultura, em seu significado científico estrito, é premissa básica para uma compreensão mais precisa do caráter eminentemente social da existência humana. FERREIRA viii explica: “Não existem mais controvérsias acerca da natureza social do ser humano”. E o mesmo autor continua: “Esse processo civilizador milenar só poderia ocorrer em grupo, em sociedade. E seu produto é o que pode ser denominado de cultura”.

Da mesma forma que se considera a existência da ocupação do agente da segurança pública sob a premissa do 'império da lei', ela também estaria inescapavelmente atrelada ao que se poderia chamar 'império da cultura', locus da interação de atores sociais individuais, grupos, organizações e instituições, bem como da sociedade humana como um todo. E é no contexto desta mesma 'trama' (no sentido de 'rede') que ocorrem fenômenos adversos ao convívio social, cujo controle pelo Estado, incluindo sua previsão, prevenção e repressão, recaem sobre a atividade ocupacional específica dos chamados agentes da segurança pública, quando da ocorrência de perturbações da paz social e da ordem pública, nomeadamente, quando da ocorrência de delitos, acidentes, sinistros e desastres.

As organizações ocupacionais afetam vários aspectos da vida humana. Elas apresentam uma grande diversidade de formas e um amplo espectro de atributos. Não é sem razão que inspiram considerável quantidade de pesquisas enquanto objeto de aplicação de diferentes

3 Comportamento: conjunto de atitudes e reações do indivíduo em face do meio social.

4 Abstração: ato de separar mentalmente um ou mais elementos de uma totalidade complexa (coisa, representação, fato), os quais só mentalmente podem subsistir fora dessa realidade. A exemplo, a cultura ocupacional policial é uma abstração quando se considera que vários comportamentos de seus membros não são formalmente aprendidos mas sim abstraídos, caso por exemplo da solidariedade. A solidariedade policial, conforme refere Shernock (1995), “envolve vínculos emocionais e compromissos em lugar de relações formais ou contratuais” (Shermock, Stan. Police Solidarity. In The Encyclopedia of Police Science, 1995. p.619.).

5 Idéias: conjunto dos pensamentos ou concepções de um indivíduo ou de um grupo social em qualquer domínio.

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teorias sociológicas 6. Seu estudo constitui uma das áreas da Sociologia contemporânea, mais afinada com este ou aquele aspecto organizacional, a exemplo, a Sociologia das Organizações, Sociologia Industrial, Sociologia do Trabalho, ou como de resto se queira ou venha classificar.

De alguma forma, a moderna Ciência da Administração compartilha uns quantos objetos de estudo da Sociologia das Organizações, fazendo-o de maneira diferenciada dos estudos sociológicos, porquanto focada em objetivos bem mais específicos. A exemplo, a Administração, ao estudar as organizações empresariais, tanto públicas quanto privadas, tem como embasamento teórico-metodológico as chamadas Teorias Gerais da Administração, com seu recorte objetivando, principalmente, o processo produtivo capitalista moderno. Entre seus autores clássicos figuram Taylorix, Fayolx e Deming xi. Diferentemente, a Sociologia das Organizações, fundada no marco Weberiano xii, focaria os processos sociais das ocupações profissionais em sua acepção mais ampla e geral.
Com tudo isso, restarão sempre questões básicas de natureza sociológica por serem mais e melhor compreendidas acerca das organizações ocupacionais, as de segurança pública e defesa social inclusive, objetos do presente trabalho. Mais particularmente, dentro do escopo espaço-temporal deste artigo, os objetos de reflexão seriam as dezenas de organizações de segurança pública já consolidadas secularmente no Brasil (bombeiros e polícias ostensivas e judiciárias), bem como as hoje centenas de guardas municipais existentes, de constituição mais recente e em franco processo de desenvolvimento institucional a partir da promulgação da Carta Magna de 1988. A esse respeito, talvez a mais basilar de todas as indagações de natureza sociológica seja a identificação das características dos processos organizacionais internos de todas aquelas instituições e de como eles influenciam as ações individuais, bem como das próprias organizações consideradas, sem olvidar sua interface com a sociedade como um todo. Uma outra questão, cada vez mais saliente, é a de como tais organizações interagem, isso tendo em conta uma existência ainda por ser completamente regulada. Temas como coordenação, formação e integração policial, são questões cada vez mais discutidas no Brasil atual.
Os enfoques adotados no estudo da cultura ocupacional, conforme citado anteriormente, podem incluir da Teoria Burocrática de Max Weber aos preceitos mais recentes da Teoria da Qualidade Total. Isso englobaria disciplinas como a Comunicação Social, Semiótica inclusive, passando por Questões de Gênero, Direitos Humanos e utilização dos modernos sistemas de Tecnologia da Informação. Muitos desses tópicos, por força da sua natureza diversificada intra e interdisciplinar, alcançam distintas áreas da Sociologia, incluindo também outras ciências sociais como é o caso da Antropologia, em sua vertente Sócio-Cultural e de metodologia etnográfica 7 de produção de conhecimento sobre a cultura e o funcionamento das organizações.

6 Passíveis de serem agrupadas, entre outras taxonomias possíveis, na Sociologia Clássica (Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber) ou na Sociologia Contemporânea (Européia, Norte-Americana e Latino-Americana).
7 Método de estudo típico da antropologia e que busca a obtenção de conhecimento sobre o estilo de vida ou a cultura específica de determinados grupos, partindo do levantamento de todos os dados possíveis sobre suas sociedades, incluindo a análise descritiva de aspectos culturais como língua e cultura material.
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Contemplando grupos ocupacionais específicos, como é o caso daqueles que lidam com a atividade de segurança pública no Brasil, sua cultura parece ainda pouco estudada. Existem indicações na literatura de que isso também aconteça, ainda que em menor grau, no restante do mundo, menos na comunidade anglo-saxônica e, menos ainda, na anglo-americana. Talvez, por tal razão, MANNING xiii, referindo a realidade dos Estados Unidos da América e do Reino Unido, chegue a apontar a necessidade de uma 'definição de trabalho', precária que seja, do conceito de “cultura policial”. Segundo ele, tal definição poderia contribuir não só para uma melhor compreensão geral da questão, mas também para um maior entendimento do comportamento dos agentes da segurança pública.

Cultura

Neste ponto, é necessário distinguir comportamento e cultura, a exemplo, segundo o que estabelece Leslie WHITE (Apud MARCONI E PRESOTTO) xiv:

Comportamento – quando coisas e acontecimentos dependentes de simbolização 8 são considerados e interpretados tendo em vista sua relação com organismos humanos, isto é, em um contexto somático – relativo ao organismo humano. Cultura – quando coisas e acontecimentos dependentes de simbolização são considerados e interpretados num contexto extra-somático, isto é, face à relação que têm entre si, ao invés de com os organismos humanos – independente do organismo humano.

Assim, o som do estampido de um tiro, no escuro da noite, seria um símbolo de perigo para um agente da segurança pública, podendo produzir nele reações somáticas traduzidas por uma descarga de adrenalina no organismo. Obviamente tratamos de um acontecimento relacionado ao organismo humano em um contexto simbólico-somático, pertinente, portanto, ao domínio das ciências do comportamento, a Psicologia inclusive. Por outro lado, a comunicação feita por aquele mesmo agente, utilizando um rádio-transceptor, informando o código numérico ou símbolo de atendimento e despacho para a ocorrência de “disparo de arma de fogo”, seria um acontecimento havido no âmbito extra-somático, interpretado no contexto da gestão tático-operacional da atividade fim da segurança pública, domínio da cultura ocupacional respectiva, seara, portanto, da Sociologia das Organizações.

Considerando o conceito de cultura citado, nos termos de Leslie WHITE (Apud MARCONI E PRESOTTO) xv, ele subentende a existência de diferentes elementos constitutivos simbólicos relacionados entre si. Assim, a cultura dos agentes da segurança pública teria sua feição idiossincrática calcada em conhecimentos, crenças, valores, normas e símbolos próprios, compartilhados pelos membros daquele grupo ocupacional. No Brasil, aí estariam inseridos, dentre outros aspectos: o conhecimento exaustivo da legislação pertinente aos fenômenos da segurança pública (penal, de trânsito, prisional, etc...), os valores sócio-culturais típicos de uma sociedade mestiça afro-européia de origem especificamente ibérica e de tradição judaico-cristã, bem como respectivas regras de

8 Relativa a “símbolo”, o que remonta ao conceito de “signo”. De acordo com SANTANELLA: Esclareçamos: o signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele apenas está no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo e numa certa capacidade.”
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conduta e símbolos da comunicação social ocupacional, inclusive no que tange o tratamento entre os agentes da segurança pública (autoridades) e o público (população civil), relações essas materializadas em convenções sociais que evocam tradições que vão do bacharelismo jurídico ibérico e italiano ao formalismo militar francês.
Com tudo isso, é ainda escassa a produção de conhecimento sobre tais fenômenos no Brasil, função do que a quase inexistência de pesquisas nacionais ou estudos comparados, incluindo especificamente a cultura ocupacional dos agentes brasileiros da segurança pública. Uma das expressões de tal situação é a ausência habitual de dados sobre os agentes da segurança pública brasileiros no Relatório Global sobre Crime e Justiça, documento elaborado periodicamente sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU) xvi.

Um outro aspecto relevante, tanto do comportamento quanto da cultura em que ele se insere, apontado por Leslie WHITE, é a simbolização. De acordo com MARCONI e PRESOTTOxvii, “Símbolos são realidades físicas ou sensoriais aos quais os indivíduos que os utilizam lhes atribuem valores ou significados específicos. Comumente representam ou implicam coisas concretas ou abstratas”. Vale destacar a importância capital do significado dos símbolos no estabelecimento da identidade ocupacional, sejam eles partilhados ou referenciais. No primeiro caso, segundo as mesmas autoras, o símbolo “tem o mesmo significado para determinada sociedade” e, no segundo, “refere-se a uma coisa específica”. Tais símbolos, (i) partilhados e (ii) referenciais, entendidos na realidade ocupacional da segurança pública, podem ter como exemplos (i) a utilização do “jargão policial” como na referência universal ao “Código Quilo9” ou no uso do chamado “Alfabeto Fonético10” e (ii) no entendimento comum, pelos agentes da segurança pública, de referências a delitos baseadas nos números dos artigos (tipos penais) correspondentes do Código Penal Brasileiro.

Cultura Ocupacional

MANNING xviii observa que a cultura ocupacional é uma versão reduzida e seletiva da cultura propriamente dita. Tal observação faz evocar o conceito de subcultura, o que, já segundo MARCONI e PRESOTTO xix, seria “um meio peculiar de vida de um grupo menor dentro de uma sociedade maior”. Ora, é apenas razoável imaginar que um grupo como o de centenas de milhares de agentes brasileiros da segurança pública possa ser considerado um “grupo menor inserido na sociedade maior”. A cultura ocupacional, modo peculiar de vida daquele grupo de profissionais, está fundamentada na execução de tarefas específicas, ou pré-determinadas, realizadas no grande contexto da “sociedade maior” a que ele presta serviços. Assim, parece ser esse o caso dos agentes brasileiros da segurança pública, quer sejam eles agentes de trânsito, agentes prisionais, bombeiros, guardas civis municipais, ou policiais em geral, com o conjunto de suas atividades determinando o mundo socialmente relevante da cultura ocupacional da segurança pública, ou subcultura como se possa chamar.

9 Por exemplo, “QAP” (aguardando transmissão).
10 Que utiliza fonemas para representar cada letra do alfabeto latino: alfa, bravo, charlie, delta, eco, etc...

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McBRIDE xx aponta que “uma subcultura ocupacional consiste de um grupo de especialistas reconhecidos pela sociedade, e por eles próprios, como tal, tendo uma cultura comum identificável, valores, comunicação simbólica própria, técnicas e padrões de comportamento apropriados”. O mesmo autor também observa que os membros da subcultura podem ser identificados pelos hábitos adquiridos ao longo do tempo de exercício atividade respectiva. Outros estudos, segundo o mesmo autor, apontam que os profissionais, membros da subcultura, podem sentir-se isolados do restante da sociedade. Tudo isso, com maior ou menor pertinência, poderia ser identificado entre os agentes brasileiros da segurança pública.
Imersas em suas tradições e história, as culturas ocupacionais englobam práticas aceitas pelos grupos respectivos, bem como normas e princípios de conduta aplicáveis a situações específicas. A exemplo, a ideologia desviante, detectável como parte da cultura ocupacional dos agentes da segurança pública de diferentes países, de considerar o delinqüente, por seu próprio comportamento desviante, como alguém desprovido dos direitos e garantias básicas inerentes aos demais membros da sociedade. Isso teria por base explicações e crenças, ideologicamente materializadas na percepção (certamente equivocada...) de uma suposta ausência de humanidade entre delinqüentes. Em um outro extremo da mesma ideologia, estaria a própria disposição dos agentes da segurança pública em sacrificar a vida em prol da comunidade, princípio de conduta altamente apreciado pela sociedade em geral. Tudo isso pode ficar caracterizado na observação atenta dos conhecimentos, técnicas, habilidades e atitudes dos agentes da segurança pública, em uma aplicação específica do que aponta genericamente MARCONI e PRESOTTO xxi.

Ainda segundo MANNING xxii, as culturas ocupacionais enfatizam seletivamente o contorno dos seus respectivos ambientes, nos quais são valorizados alguns fatos e outros não, vinculando modos de perceber, agir e crer. Na cultura brasileira da segurança pública, por exemplo, existe o que seus “agentes de linha” e os próprios gestores operacionais classificam e referem enfaticamente como 'ocorrências de vulto'. São alguns atendimentos cercados de grande risco físico para o agente da segurança pública, algumas vezes até mesmo letais. Enquanto isso, muitas' vezes, naquelas mesmas organizações (corpos de bombeiros, guardas municipais, polícias, etc...), seus membros 'de linha' e administradores deixam de referir outras intervenções profissionais, parte de um enorme volume de atendimentos materializados em ocorrências de'pouco ou nenhum perigo físico para aqueles agentes públicos, mas de indiscutível relevância social para a comunidade. Esse é o caso dos partos de emergência realizados por bombeiros, guardas municipais ou policiais, incluindo a localização de crianças e adolescentes, idosos e pacientes psiquiátricos que estão perdidos e sendo procurados ansiosamente por seus familiares.

De alguma forma, as culturas ocupacionais possuem especificidades não mais percebidas por seus membros e que, ainda que 'invisíveis' para eles, constituem poderosos condicionantes comportamentais. Assim acontece com os símbolos, importantes elementos constitutivos da cultura, a linguagem ocupacional sendo um deles. A exemplo, o jargão dos agentes da segurança pública, algumas vezes utilizados por eles até mesmo na mídia, como se o seu significado fosse explicitamente compreensível, ou mesmo coloquial, para o restante da comunidade: 'o elemento foi detido em atitude suspeita de pedofilia, sendo depois lavrado o flagrante respectivo pela autoridade policial competente'...

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MANNING xxiii observa que a cultura ocupacional vincula a cognição com a ação e o ambiente com a organização. Assim acontece, por exemplo, com a prática de acionar sirenes durante o patrulhamento ostensivo noturno. Tal ação tem sua justificativa muitas vezes desconhecida do grande público, já que baseada na premissa cognitiva policial de que criminosos eventuais (talvez não os contumazes ou habituais...) possam ser 'dissuadidos' preventivamente pelo soar de sirenes. Já a chamada 'organização ternária', feição quantitativa básica das frações táticas das unidades militares dos exércitos, também aplicada na organização dos efetivos brasileiros das unidades do policiamento ostensivo, demonstra que as forças policiais militares do país estejam moldadas, historicamente, de acordo com o ambiente e cultura militar das Forças Armadas (em um exemplo claro da vinculação organizacional das polícias ostensivas com o ambiente castrense e a cultura militar propriamente dita).
Da mesma forma, é possível detectar, no tratamento de “doutor”, disseminado entre policiais civis (judiciários federais, estaduais e distritais), uma clara vinculação com as tradições e 'etiqueta' do Poder Judiciário e meio advocatício. Vale lembrar que os policiais judiciários brasileiros, paradoxalmente, não pertencem ao Poder Judiciário, como pode sugerir sua denominação, tampouco podendo exercer funções advocatícias.
Revisitando a questão da aplicação da organização militar nas polícias ostensivas, ela segue sendo utilizada nos dias atuais, ainda que tais instituições empreguem seu efetivo, de fato e basicamente, de maneira isolada, em dupla, ou em 'guarnições de mais de dois', obviamente que não de 'forma ternária' como nas forças ortodoxas de emprego terrestre dos exércitos do mundo. De toda sorte, perduram as analogias e metáforas militares naquelas organizações de segurança pública do Brasil, até mesmo de maneira antagônica à efetividade da atividade-fim, como fica posto nas seguintes colocações de KLOCKARS xxiv:

Enquanto a analogia militar e a metáfora da 'guerra contra o crime' trazem para o trabalho policial a idéia das virtudes militares, supostamente reforçando o apoio do público para com a polícia, as conseqüências de longo prazo de envolver a polícia com a retórica militar podem gerar mais problemas que apontar soluções. O problema fundamental é a própria idéia da 'guerra contra o crime'. Ela é uma guerra que a polícia não só não pode ganhar, como também não pode, menos ainda, tentar 'combater'. A polícia não pode ganhar, simplesmente porque está além da sua capacidade mudar coisas como desemprego, distribuição etária da população, educação moral, liberdades civis, ambições pessoais desviantes, etc. Tampouco a polícia detém as ofertas de oportunidades sociais e econômicas para fazer isso—fatores que influenciam, até certo ponto, o tipo e quantidade de crime em qualquer sociedade.
Pior ainda, nenhuma sociedade democrática está preparada para permitir que sua polícia combata uma verdadeira 'guerra contra o crime', já que nenhuma delas estaria disposta a tolerar os tipos de abuso contra as liberdades civis de seus cidadãos inocentes, coisa que o combate, em qualquer tipo real de guerra, termina inevitavelmente por implicar com os chamados 'danos colaterais' ('balas perdidas'?).

Assim, a cultura organizacional dos agentes da segurança pública pode ser vista como uma espécie de “tecido” no qual a natureza das fibras (cognição, ação, ambiente e organização), nem sempre de combinação lógica aparente (ou até mesmo combinadas de maneira

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aparentemente ilógica...), permanecem ligadas de maneira intrincada e de difícil dissociação. Por isso mesmo, a metáfora militar da 'guerra contra o crime' é sempre recorrente, função dos efeitos imediatos da insegurança, medo e pressão política que a delinqüência supostamente desenfreada pode produzir na sociedade (criando o chamado 'pânico moral' diante do 'medo do crime'). Isso induz declarações públicas não menos drásticas, da parte dos operadores políticos do Estado, como é o caso de um imaginado 'controle total' que a expressão 'guerra contra o crime' possa sugerir. Mais que isso, entretanto, as verdadeiras causas da aparente “belicosidade” da criminalidade podem estar distantes dos condicionantes de uma “guerra”, cuja analogia seriam os enfrentamentos armados entre delinqüentes e agentes da segurança pública. Tais causas seriam tão visíveis para KLOCKARS quanto para alguns atores do mundo policial brasileiro. Parece ser esse o caso do Delegado Hélio Luz da Polícia Civil do Rio de Janeiro, quando ele assim elabora acerca das causas do comportamento de menores infratores xxv :

Mas a causa de fundo é social. Como é que você, num país como o nosso, com esse grau de concentração de renda, vai incriminar o menor? O menor infrator é efeito puro. Se você der emprego ao pai do menor, resolve o problema dele. As instituições para menores têm que existir, mas são paliativos. A solução do problema não está aí. Você não tem um ou outro infrator. Você tem uma engrenagem que joga crianças na rua a toda hora. Se não se enfrentar o problema da distribuição de renda, do desemprego, da miséria, que ninguém se iluda, o problema não vai acabar...

Cultura Policial e Personalidade

Parece intuitiva a noção de que a cultura ocupacional da segurança pública, com peculiaridades próprias, mais especificamente a constante exposição de seus agentes às vítimas de acidentes, mortos em sinistros, enfrentamentos com delinqüentes perigosos e contato com toda sorte de tragédias humanas, inclusive grandes desastres, demande um tipo específico de personalidade ocupacional. Some-se a isso a necessidade do uso constante da força e da autoridade... Assim, WESTLEY (Apud FAGAN) xxvi, refere uma “cortina azul” 11, por detrás da qual estaria protegida a personalidade típica do agente da segurança pública, “incluindo características como autoritarismo, desconfiança, racismo, hostilidade, insegurança, conservadorismo e cinismo”.
NEIDERHOFFER e BLUMBERG (Apud FAGAN) xxvii enfatizam a crença, entre os agentes da segurança pública, “de que a causa do crime é uma permissividade generalizada”. FAGAN (Idem) ensina que a personalidade policial tanto pode ser própria do indivíduo, quanto adquirida a partir do processo de socialização, com isso acontecendo através de demandas formais e informais do ambiente ocupacional. Ainda segundo ele, “(existem) evidências dando suporte aos dois modelos, a maioria delas (parecendo) privilegiar o segundo deles”.
Já POGREBIN xxviii observa que a sociedade espera dos seus agentes da segurança pública um grau de compostura compatível com a missão ocupacional de 'proteger e servir'. Isso

11 Referência ao tradicional uniforme azul dos profissionais de segurança pública dos países anglo-americanos.

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incluiria, da parte deles, manter o controle emocional, mesmo em circunstâncias trágicas e de intenso estresse emocional, caso, por exemplo, dos atendimentos a ocorrências de homicídios, suicídios, incêndios e acidentes de trânsito com vitimas fatais. Em tais circunstâncias, os agentes da segurança pública precisariam separar as próprias emoções da realidade, muitas vezes trágica, constantemente presente no seu cotidiano profissional. Conscientes da expectativa pública, os profissionais de segurança pública sentir-se-iam obrigados a parecer 'super-mulheres e super-homens', não aparentando o medo ou horror que sentem, encenando uma suposta 'calma absoluta' em situações críticas, com o fito de parecer lidar com elas de maneira essencialmente objetiva ou 'profissional'. Precisariam, assim, a maior parte do tempo, utilizar padrões severos e inflexíveis de manejo emocional e conseqüente autocontrole. - A que preço para eles e para a propria sociedade depois?
Cultura Ocupacional Anglo-Americana: Uma Visão Brasileira

Os anos de 1969 a 1982 foram palco do crescimento da polícia científica profissional norte-americana, essencialmente em função do financiamento para ensino e pesquisa promovido pela Administração de Assistência Policial do Governo Federal. É difícil exagerar o impacto daquela agência, e de outras fontes de fomento para o ensino e pesquisa policial nos EUA, caso da Fundação Ford, do que resultaram intensas pesquisas realizadas nas décadas de 1970 e 1980.
Numerosos estudos foram então desenvolvidos pela primeira vez sobre "o que funciona e não funciona na atividade policial". Entre eles, o patrulhamento aleatório (Experimento de Kansas City); o patrulhamento a pé (Experimentos de Flint, Michigan e Newarc); a avaliação do emprego do patrulheiro solitário ou em dupla (Experimento de San Diego); o policiamento em equipe (experimento de Cincinnati); a redução da violência doméstica (Experimento de Minneapolis) a redução do medo do crime (Experimento de Houston) e, finalmete; o de policiamento orientado por problemas (Experimento de Newport News). Foi no sequenciamento desses experimentos que emergiu, dos anos 1990 aos dias atuais, a ênfase na filosofia organizacional de gestão do chamado policiamento comunitário xxix.

A pesquisa social aplicada ao mundo profissional da segurança pública brasileira é relativamente nova e, pela mesma razão, de produção tímida em relação a outros países, particularmente os anglo-saxônicos. Mas isso não quer dizer que as pesquisas clássicas realizadas nos países anglo-americanos sejam desconhecidas no Brasil, o que pode ficar demonstrado nas observações de SILVA xxx, ao referir a noção de que simples aumentos de efetivo possam não ser suficientes para a contenção da criminalidade, em uma alusão direta ao Experimento de Kansas City acima apontado por O’CONNOR:

A descoberta mais notável, todavia, foi resultante da conhecida Experiência de Policiamento Preventivo da cidade de Kansas, levada a efeito sob os auspícios da Police Foundation. A experiência, realizada entre 1º de outubro de 1972 e 30 de setembro de 1973, mediu o impacto do policiamento de rotina sobre a incidência do crime e do medo do público em relação ao crime (...) A análise dos dados obtidos pelos pesquisadores demonstrou que não houve diferenças significativas no índice de criminalidade, na

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atitude dos cidadãos em relação à polícia, no medo do crime, nem no tempo de reação às solicitações.

Por outro lado, a pesquisa em segurança pública é relativamente disseminada nos países anglo-saxônicos: Austrália, Canadá, Estados Unidos da América (EUA), Irlanda, Nova Zelândia e Reino Unido. Dentre eles, mais ainda nos países anglo-americanos: Reino Unido e EUA. São fartas as referências ao “paradigma policial britânico”, e segundo WALKER e RICHARDSxxxi, parece ser esse o caso da Polícia Metropolitana de Londres, instituição policial pioneira daquele país estabelecida em 29 de setembro de 1829. Hoje o Reino Unido possui 45 organizações policiais locais (municipais, de condado e metropolitanas), seis das chamadas “não-geográficas” (temáticas ou específicas, de atuação local ou nacional), perfazendo, portanto, 51 instituições.

Ainda que a primeira organização policial anglo-americana modernamente estruturada tenha sido a Polícia Metropolitana de Londres (vulgarmente conhecida como “Scotland Yard”), os norte-americanos rapidamente emularam seu modelo, constituindo os departamentos metropolitanos de polícia das cidades de Boston (1838) e Nova Iorque (1844). Os EUA estão hoje entre os países mais ativos na produção de conhecimento da atividade policial, com isso se devendo, muito provavelmente, entre outras razões, ao fato de contarem com grande quantidade de recursos (federais, estaduais, de condado, municipais e até mesmo tribais nas reservas de 'nações nativo-americanas') para o setor segurança pública, bem como possuírem o maior número de organizações policiais do mundo.

O’CONNOR xxxii aponta que os EUA possuem aproximadamente 18.760 instituições policiais, empregando mais de 940 mil indivíduos no setor, com gastos anuais da ordem de 51 bilhões de dólares (dados do ano 2.000). São cerca de 60 as instituições policiais federais, com a maioria delas estando vinculadas ao equivalente ao Ministério da Justiça daquele país. Os EUA também possuem 26 policias rodoviárias e 23 estaduais, com 35 unidades federativas mantendo instituições policiais adicionais com algum tipo de jurisdição ou poder investigativo especial. Os xerifados 12, mantidos nos EUA segundo a tradição britânica, contam 3.088 organizações. Afora todo esse contingente, existem ainda cerca de 15 mil polícias locais ou municipais. Entre outras importantes decorrências dessa “situação quantitativa”, vale citar a cultura técnico-cientifica correspondente. Os cursos superiores para o ensino de graduação em “justiça criminal”13 somam várias centenas de programas, fortalecidos por uma considerável produção de pesquisa de pós-graduação com origem em mais de 200 programas, englobando diversas áreas temáticas do conhecimento policial, a cultura ocupacional sendo uma delas.

Caracteristicamente, são bastante aventados na atualidade brasileira da segurança pública temas de antigos trabalhos norte-americanos sobre a cultura e gestão policial, caso de “Consertando as Janelas Quebradas” (EUA, WILSON, 1982) xxxiii e “Polícia Comunitária” (EUA, GOLDSTEIN, 1977) xxxiv. Naquele país, bem como no Reino Unido, sobressaem

12 A expressão inglesa “sheriff” deriva da Inglaterra anglo-saxônica do século IX. Os “reeves”, encarregados reais de velar pelos domínios da coroa, deram origem ao termo. Os “reeves do rei”, passando a serem chamados “sheriffs”, exerciam poderes judiciais, financeiros e administrativos ao longo do território que depois veio a constituir o império britânico.
13 Área acadêmica civil, freqüentada especificamente por profissionais norte-americanos de segurança pública e privada. Não tem equivalente no ensino superior brasileiro.

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atualmente, entre outros temas da produção de conhecimento para a segurança pública, o da administração policial, uso da força (letal e não-letal ou menos-que-letal), cultura policial, violência, corrupção, solidariedade, polícia comunitária, polícia orientada por problemas, polícia guiada pela Inteligência, medo do crime, gestão de trânsito, gerenciamento de desastres e emergências, etc. Ainda assim, MANNING afirma que os principais trabalhos hoje existentes guardam grande variabilidade em método, foco conceitual, profundidade de análise e grau de comparabilidade. Tudo isso compromete, de certa forma, a confiabilidade e validade desse tipo de conhecimento, mormente em sua possibilidade de generalização.

De acordo com MARCONI E LAKATOS xxxv, “O conhecimento vulgar ou popular, as vezes denominado senso comum, não se distingue do conhecimento científico nem pela veracidade nem pela natureza do objeto conhecido: o que os diferencia é a forma, o modo ou o método e os instrumentos de ‘conhecer’”. Assim, levando em conta o questionamento de MANNING sobre as questões de variabilidade metodológica e comparabilidade da pesquisa sobre segurança pública, ainda está por estabelecer-se, tanto no Brasil, menos fora dele, uma verdadeira “Sociologia da Segurança Pública”, consolidada em uma disciplina que observe rigorosa metodologia de produção de conhecimento, segundo as melhores práticas de pesquisa das ciências sociais.

Oportuno lembrar FERREIRA xxxvi quando ele aponta que “as primeiras teorias sociológicas, surgidas em meados do século XIX na Europa voltaram o foco de seu interesse para o problema da relação dos indivíduos com a sociedade”. E esse certamente é o caso em relação às organizações de segurança pública e sua cultura, valendo também citar TOMAZI (Apud FERREIRA) xxxvii quando elabora a esse respeito:

São essas situações sociais que interessam a Sociologia. Situações cujas causas não são encontradas na natureza ou na vontade individual, mas antes devem ser procuradas na sociedade, nos grupos sociais ou nas situações sociais que as condicionam. É tentando explicar essas situações que a Sociologia colocará como básico o relacionamento indivíduo e sociedade. A Sociologia volta-se o tempo todo para problemas que o homem enfrenta no dia-a-dia de sua vida em sociedade.

Cultura Ocupacional Anglo-Americana:

Revisão da Literatura de Referência

MANNING (1995) cita a bibliografia que dá contorno ao tema da cultura ocupacional abordado em seu artigo de referência para o presente trabalho.
Entre os autores citados por ele figuram os seguintes:

1. BANTON (1964),
2. BITNER (1967, 1970 e 1974),
3. BROGDEN (1982), JEFFERSON E GRIMSHAW (1984),
4. CAIN (1974),
5. HOLDAWAY (1980, 1983),
6. MANNING (1977 e 1979),
7. RUBINSTEIN (1972),

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8. SKOLNICK (1966),
9. WESLEY (1970);
10. WILSON (1968).

Segue abaixo uma breve descrição geral dos trabalhos acima citados, referências da literatura sobre a cultura ocupacional policial anglo-saxônica no período 1964-1984.

1. MICHAEL BANTON xxxviii

Professor Emérito de Sociologia, University of Bristol, Inglaterra, Reino Unido.
Obra de referência: BANTON, M. The Policeman in the Community. New York: Basic Books, 1964.

A obra de referência de BANTON (1964) frequentemente é referida como sendo a peça bibliografia seminal da Sociologia Policial, tanto nos EUA quanto no Reino Unido. Ela foi produzida de acordo com um método de procedimento comparativo, levando em conta a atuação policial nos EUA e Escócia (Reino Unido). De acordo com MANNING (1995, p.472), os estudos de BANTON “estão focados em duas funções policiais, repressão criminal e manutenção da ordem ('lei e ordem') em sociedades de integração social relativamente alta ou baixa (assim caracterizada pela densidade das interações sociais)”. MCLAUGHLINxxxix argumenta que “a influência e legado de BANTON mostra que o estudo sociológico da atividade policial tem sido dominado pela perspectiva da obra de DURKHEIM, na medida em que enfatiza a natureza simbólica da polícia e que a observação direta do seu trabalho é a melhor metodologia para a respectiva compreensão”.

2. EGON BITTNER xl

Professor Emérito de Sociologia, Brandeis University. Waltham, Massachusetts, EUA.

Obra de referência: BITTNER, E. “The Police on Skid Row”. American Sociological Review 32 (October 1967): 699-715.
Outras obras de BITTNER:
________. The Functions of Police in Urban Societies. Bethesda: National Institutes of Mental Health, 1970;
________. “…A Theory of Police.” In The Potential for Reform of Criminal Justice. Ed. H. Jacob. Beverly Hills: Sage, 1974.

BITTNER (1967, 1970 e 1974), de acordo com MANNING, “toma o campo fenomenológico 14 da atividade policial como algo central em seus estudos e descreve a ação policial como sendo a aplicação competente da violência, coagindo o público à manutenção da ordem em determinada situação” (1974). MANNING (1995, p.473), conforme também aponta REINER xli, observa que BITTNER e outros pesquisadores da cultura ocupacional policial “aceitam a centralidade, para a polícia, de controlar e ordenar o

14 Estudo descritivo de um fenômeno ou de um conjunto de fenômenos em que estes se definem quer por oposição às leis abstratas e fixas que os ordenam, quer às realidades de que seriam a manifestação. “A fenomenologia está baseada na abordagem dos problemas filosóficos, segundo um método que busca a volta “às coisas mesmas”, numa tentativa de reencontrar a verdade nos dados originários da experiência. “Campo de aplicação de categorias universais, fruto do exame atento e perscrutante da “experiência” ela mesma.” (SANTAELA, L. O que é semiótica. São Paulo: Editora Brasiliense, p.28).

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espaço público”. BITTNER descreve o uso da força pela polícia como a “aplicação de remédios coercitivos não-negociáveis”, afirmando que tal aplicação pode ser esperada em qualquer ação policial, de modo a “atingir um objetivo determinado”xlii. BITTNER, ao abordar a atividade policial com foco fenomenológico, a considera como a aplicação competente da violência em prol da manutenção da ordem. Competência e força, criando obediência civil, marcariam a tônica da interpretação daquele autor, que “defende que (membros das) forças policiais, mais que quaisquer outros funcionários do Estado, utilizam um elevado grau de discricionariedade ao lidar com criminosos”.xliii

3. MICHAEL BROGDEN xliv
Professor do Instituto de Criminologia e Justiça Criminal da Escola de Direito da Queen’s University de Belfast, Irlanda do Norte, Reino Unido.

Obra de referência: BROGDEN, M. The Police: Autonomy and Consent. New York: Academic, 1982.

TONY JEFFERSON xlv
Professor do Departamento de Criminologia da Keele University, Keele, Staffordshire, Inglaterra, Reino Unido.

ROGER GRIMSHAW xlvi
Professor do Centro para Estudos do Crime e da Justiça da Escola de Direito do Kings College de Londres, Inglaterra, Reino Unido.

Obra de referência em coautoria: JEFFERSON, T., GRIMSHAW, R. Controlling the Constable: Police Accountability in England and Wales. London: Cobden Trust, 1984.

Interpretações estruturalmente baseadas para explicar a cultura policial estão contidas nos trabalhos históricos de BROGDEN (1982) e de JEFFERSON e GRIMSHAW (1984). Na visão dos três autores, a força básica moldando a atividade policial seria a lei. A cultura ocupacional, a administração policial e o comportamento dos agentes da segurança pública seriam todos tidos como conseqüências diretas dos limites impostos pela lei. A lei guiaria os gestores e a administração policial. Isso incluiria as decisões dos chefes de polícia, dos gestores de nível intermediário e dos próprios policiais. Tal percepção, essencialmente mono-causal, encontra pouco suporte, tanto entre os pesquisadores quanto dos próprios policiais. Segundo MANNING, o caráter determinante da lei não está evidente nem em estudos do comportamento operacional policial, nem de outros fenômenos típicos da ocupação, caso da corrupção. Com tudo isso, MANNING aponta a necessidade de pesquisas adicionais sobre o efeito padronizador que a lei possa ter sobre o comportamento e modelagem da cultura ocupacional policial.

4. MAUREEN E. CAINxlvii

Professora de Sociologia Jurídica e Criminal da Escola de Direito da University of Birmingham, Inglaterra, Reino Unido.

Obra de referência: CAIN, M. Society and the Policeman’s Role. London: Routledge and Kegan Paul, 1973.
14

Os estudos de CAIN, publicados em 1973, retomam temas abordados anteriormente por BANTON. Ela também compara forças policiais urbanas e rurais, tendo como critérios definidores do papel policial o público e os próprios policiais. CAIN revisa a questão do grau diferenciado de dependência entre policias do meio rural e urbano, com este último ambiente, tipicamente, podendo ser considerado como potencialmente não-cooperativo para o trabalho policial. A autora refere que, no meio urbano, o rádio e a viatura policial são tidos como instrumentos básicos da ação policial, o que marca o grau de dependência dos agentes da segurança pública em tais ambientes.

5. SIMON HOLDAWAYxlviii

Professor do Departamento de Direito e do Centro para Pesquisa Criminológica, da University def Sheffield, Inglaterra, Reino Unido.

Obras de referência: HOLDAWAY, S. “The Occupational Culture of Urban Policing: An Ethnographic Study”. Ph. D. Dissertation. University of Sheffield, 1980;
__________. Inside the British Police. Oxford: Basil Blackwell, 1983.

HOLDAWAY foi agente da Polícia Metropolitana de Londres por onze anos. Em sua obra de referência formula um sumário crítico da cultura ocupacional policial britânica, abordando questões como risco, violência e controle criminal, temas comuns da pesquisa policial, tanto britânica quanto norte-americana. Simon HOLDAWAY enfatiza a tipificação policial do tempo, do espaço e do trabalho, segundo ele, parte central das estratégias e táticas policiais. Para HOLDAWAY, assim como para MANNING, risco e desordem (ou caos) são aspectos essenciais para o estudo da cultura policial, com a incerteza sendo considerada uma espécie de “caos moral” potencial. Função de tal premissa, não só HOLDAWAY e MANNING, mas também BITTNER, aceitam a centralidade, para a polícia, da necessidade de controle e ordenamento do espaço público.

6. PETER K. MANNING xlix

Professor de Sociologia da Escola de Justiça Criminal, Michigan State University.EUA.

Obras de referência:

MANNING, P.K. “Police Lying.” Urban Life and Culture 3 (1974): 283-306;
___________. Police Work. Cambridge, MA: MIT Press, 1977;
___________.“The Social Control of Police Work.” In British Police. Ed. S. Holdaway. London: Edward Arnold, 1979;
___________. Narcs’ Game. Cambridge, MA: MIT Press, 1980;
___________. “Organizational Work: Estructuration of the Environment.” British Journal of Sociology 33 (March 1982): 118-134;
___________. “Police Careers”. In The Encyclopedia of Crime and Justice. Eds. S. Kadish et al. New York: Macmillan, 1983;
___________. “British Police: Continuities and Changes.” Journal of the Howard League 25 (November 1986): 261-278.

A visão de MANNING (1977 e 1979) sobre a cultura ocupacional policial está baseada na proposição existencial de que a vida é incerta. A incerteza inerente ao trabalho policial e uma detectada necessidade de controlar a informação para manter uma “fachada pública”

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intensificam o caráter de 'trabalho em equipe' desenvolvido pela polícia, gerando vínculos coletivos e de dependência mútua. MANNING ilustra a natureza 'encenada' do ambiente pela cultura ocupacional, apontando um conjunto de entendimentos compartilhados sobre técnicas, papeis, indivíduos e organizações. Tais entendimentos peculiares, freqüentemente em conflito com as estratégias e táticas organizacionais para a gestão do 'drama público da insegurança', dão contorno ao chamado “profissionalismo policial”. A esse respeito, FARRISl formula a seguinte observação:

O profissionalismo no trabalho policial reflete as atitudes e desempenho na condução da grande responsabilidade de proteger as vidas e liberdade do público ao qual a polícia serve. O profissionalismo cria na percepção do público a imagem da polícia. Isso implica que um policial tenha atingido um determinado nível de especialização pela educação, treinamento e experiência, o que o separa de outros, menos qualificados ou menos dedicados à causa pública. O profissionalismo também implica que um profissional se esforce por atingir os mais altos padrões de comportamento e desempenho. Tal esforço distingue o profissional do não-profissional, com este último mostrando atitudes que traduzem a intenção de “fazer por menos” em relação a padrões de excelência ética, comportamento e competência.

7. JONATHAN RUBINSTEINli

Jornalista, Philadelphia, Pennsylvania, EUA.

Obras de referência: RUBINSTEIN, J. City Police. New York: Farrar, Strauss and Giroux, 1972.

A obra de referência de RUBINSTEIN, hoje com mais de trinta anos, é uma análise considerada tão pertinente da atividade policial a ponto de permanecer atual. Além de tratar das origens da policia, o autor trabalha diversos outros temas, incluindo o conhecimento territorial que os policiais detêm de suas áreas de trabalho, técnicas de coleta de informação, e até mesmo como incide sobre eles o fenômeno da corrupção. Jonathan RUBINSTEIN chega a detalhar a preparação de falsos mandados de busca, quando supervisores policiais selecionariam os policiais mais bem dotados para tal conduta ilícita. A obra inclui ainda a figura do lendário Rizzo (policial e depois prefeito), com quem RUBINSTEIN trabalhou nas ruas de Philadelphia. O relato de RUBINSTEIN parece divertido, como ao descrever episódios policiais pitorescos quando da sua experiência como aluno da academia de polícia. A obra desce a detalhes específicos de atitudes típicas da cultura policial, como mostra o trecho a seguir (1972, p.236):

Qualquer um que indique a intenção de fugir, quando do encontro fortuito com um policial, imediatamente estará sob suspeita. Obviamente, quando um policial vira uma esquina e se depara com alguém correndo, a suspeita é de que aquele indivíduo esteja evitando a presença policial. Mas, ainda mesmo que a ação de correr não esteja relacionada com o encontro com o policial, ele tomará isso como evidência de que “algo está errado”. Meninos correndo nas ruas são parados frequentemente por policiais, simplesmente pelo fato de estarem correndo. E isso, frequentemente, é tudo que eles estão fazendo (correr...).

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8. JEROME H. SKOLNICKlii

Professor da Escola de Direito, University of California, Berkeley, EUA.

Obra de referência: SKOLNICK, J. Justice Without Trial. New York: John Wiley and Sons, 1966.

A obra de referência de SKOLNICK trata das diferentes influencias sob as quais atuam os profissionais da lei e da ordem. Segundo ele, a combinação do perigo com a figura da autoridade, comumente existente no dia-a-dia policial, inevitavelmente terminaria por frustrar a regularidade de procedimentos exigida dos agentes da segurança pública. Se fosse possível estruturar papeis sociais sob condições específicas, propõe ele, seria prudente fazer com que o perigo e a autoridade jamais estivessem juntos, porquanto tal combinação milita em desfavor do “império da lei”. O perigo, ensejando a adoção de condutas de proteção individual, daria lugar à impulsividade, função do medo e da ansiedade. Em tais condições, o uso da autoridade passaria a ser, também, um recurso para redução de possíveis ameaças.

A descrição de SKOLNIK da função policial, enfatizando a combinação “perigo e autoridade”, mostra em alguma medida a razão da violência em eventuais encontros entre a polícia e a cidadania, o que também serviria de base para a formação da “cultura policial”. Considerando que a maioria dos grupos ocupacionais desenvolve sua própria identidade, a da polícia seria muito mais forte em função da natureza do trabalho tipificada por SKOLNIK. É clássica a referência de que não se pode entender a natureza do trabalho policial, que não seja através do seu próprio exercício. Como resultado, sempre que a comunidade questiona as ações da polícia, como soe acontecer quando um policial utiliza o recurso da arma de fogo e do seu efeito letal, a categoria profissional tende a se fechar nela mesma, defendendo seu membro incondicionalmente. Também segundo o mesmo autor, o desenvolvimento do sentimento de pertinência à “sociedade policial” começa durante o período de treinamento, continuando a se desenvolver até que o neófito seja definitivamente aceito como um novo membro da “fraternidade” policial.

SKOLNICK (1966) e RUBINSTEIN (1972) refletem, com seus trabalhos, os mesmos temas estudados por WESLEY acerca da violência, sigilo, desconfiança e pressão do grupo dos pares prevalentes no meio policial. O denso estudo de caráter etnográfico 15 de RUBINSTEIN expõe as táticas ocupacionais resultantes: mentira, violência, simulação e dissimulação, bem como o estabelecimento de um mundo quase-paranóico 16 entre tais profissionais. Já SKOLNICK, de maneira específica, aponta a contradição entre aspectos da cultura ocupacional policial e a respectiva “personalidade ocupacional”, entidades muitas vezes contrapostas aos valores do “Estado Democrático de Direito”. Segundo ele, o policiamento e muitas das garantias individuais previstas na legislação estariam freqüentemente em conflito, com a resolução de tal conflito privilegiando as práticas da cultura policial. A pressão de agir no sentido da manter a lei e a ordem, e assim o próprio respeito pela polícia, reforçada por crenças culturalmente validadas vis-à-vis o perigo e a violência, se traduziriam em uma cultura organizacional que pode induzir seus membros a

15 Método de estudo típico da antropologia e que busca a obtenção de conhecimento sobre o estilo de vida ou a cultura específica de determinados grupos, a partir do levantamento de todos os dados possíveis sobre suas sociedades, incluindo a análise descritiva de aspectos culturais como língua, raça, religião e cultura material.
16 Paranóico: aquele que sofre de paranóia, psicopatia que se acentua em delírios persecutórios.
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“fazer justiça pelas próprias mãos”. As teorias de SKOLNIK e HOLDAWAY são amplamente aceitas, não só como aplicáveis ao policiamento norte-americano, mas também ao britânico.

9. WILLIAM A. WESTLEY liii

Obra de referência: WESTLEY, W. Violence and the Police. Cambridge, MA: MIT Press, 1970.

A obra de referência de WESTLEY é considerada um dos trabalhos mais importantes já desenvolvidos sobre a polícia, sendo constantemente referida na literatura respectiva e nos círculos que tratam do comportamento desviante e controle social. William WESTLEY busca explicar a razão pela qual a violência policial é tão generalizada e difícil de controlar. O autor baseia seu estudo na cultura ocupacional, valendo-se dela enquanto conceito explanatório básico. Observa que em razão do público poder ser não-confiável, hostil, e até mesmo violento, a cultura ocupacional policial enfatiza a proteção individual, sigilo e violência, bem como a idéia-força da necessidade de manutenção do respeito pela polícia. WESTLEY aponta aqueles temas como configurações variáveis, mais salientes nos grandes departamentos urbanos de polícia que em outras organizações menores, tal qual outros autores já citados no presente artigo (BANTON e CAIN). WESTLEY liv, em sua obra de referência, observa que mais de três de cada quatro policiais (parte da amostra de uma enquête por ele mesmo desenvolvida), declararam que não denunciariam outro policial por receber dinheiro de um preso, e que tampouco testemunhariam contra ele caso fosse acusado posteriormente por isso. Tal atitude seria parte do famoso “código de silencio”, aspecto da cultura ocupacional antagônico ao controle da corrupção policial.

10. JAMES Q. WILSONlv

Professor Emérito de Administração Pública, Harvard University, Massachusetts, EUA.
Obra de referência: WILSON, James Q. Varieties of Police Behavior: The Management of Law and Order in Eight Communities. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1968.
WILSON, em sua obra de referência, compara o trabalho realizado por oito diferentes instituições policiais norte-americanas. Segundo O’CONNORlvi, ao examinar diferentes estruturas organizacionais policiais James WILSON teria sido o primeiro a estudar o estilo da cultura organizacional policial, estabelecendo uma tipologia básica de três elementos. De acordo com WILSON, as instituições policiais adotariam sua feição organizacional de acordo com um de três estilos, ou combinação deles, a saber: (1) vigilante; (ii) legalista; e (3) de prestação de serviços.

O estilo vigilante seria detectado na atuação de certas polícias presentes em comunidades pobres, enfatizando intervenções policiais baseadas na persuasão, ameaça, e asserção vigorosa da autoridade. Tais ações se dariam em lugar da realização de prisões, tendo como prioridade a manutenção da ordem. O estilo legalista estaria baseado na ação pautada estritamente “na letra da lei”, com a realização de prisões freqüentes visando assegurar a

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segurança pública através do “controle da criminalidade”. Tal estilo faria com que as instituições assim orientadas ficassem distanciadas dos problemas comunitários e de ordem não-criminal. Já o estilo “prestador de serviços” estaria alinhado com o auxílio à comunidade, conduzido de maneira conjunta com outras agências de governo, particularmente as da área da assistencial, com os agentes do órgão policial fazendo os devidos encaminhamentos. Na verdade, o estilo “vigilante” e o de “prestador de serviços” poderiam ser considerados como focados na “manutenção da ordem” (“order”), enquanto o “legalista” no controle da criminalidade (“law”).

Segundo MANNING, WILSON percebia a cultura organizacional policial como estando bastante envolvida com os problemas administrativos da vida da comunidade. De que maneira seria possível comandar e controlar a polícia, quando não existe uma teoria adequada de causalidade de eventos, tampouco tecnologia, para lidar com o caráter muitas vezes aleatório da natureza humana? Assim, em sua obra seminal, WILSON argumenta que as estruturas organizacionais policiais, com seus diferentes estilos, seriam uma resposta ao grau de incerteza do ambiente social. Por isso mesmo, WILSON enfatiza a incerteza que permeia tanto o trabalho dos administradores policiais quanto dos próprios “policiais de linha”.

Cultura Ocupacional Anglo-Americana:

Síntese da Revisão da Literatura

Segundo MANNING, os estudos acima apresentados, muitos deles de cunho etnográfico, encontram apoio em diferentes tipos de dados, tendo sido realizados ao longo de mais de duas décadas de pesquisas sobre a polícia das sociedades anglo-americanas. Todos eles, de uma forma ou de outra, concedem à cultura um lugar significativo na determinação do comportamento dos agentes da segurança pública. Em alguns desses estudos fica estabelecida uma relação dialética 17 entre a lei, a organização policial e aspectos da estrutura social (raça, classe, gênero e idade). Tal abordagem subentende uma relação entre o ambiente, por um lado, e as ações dos agentes da segurança pública pelo outro, com ela estando consolidada por uma espécie de mediação simbólica, amplamente referida por alguns dos autores aqui citados. O esquema parece poder ficar sustentado tanto quando as decorrências da cultura ocupacional são vistas como negativas quanto positivas. Assim, os elementos da cultura ocupacional tanto poderiam servir de suporte para a mentira, corrupção ou violência, quanto também de um necessário apoio ao colega policial, fomentando a camaradagem, bloqueando o estresse ocupacional ou até mesmo induzindo as melhores práticas profissionais.

Cultura Ocupacional Anglo-Americana:

Estrutura Social

17 Dialética: modo de pensar as contradições da realidade ou de compreendê-la como essencialmente contraditória e em permanente transformação.

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Segundo MANNING, três aspectos principais da estrutura social são pouco integrados aos estudos da cultura ocupacional policial. O primeiro deles seria a preocupação anglo-saxônica com a igualdade, com ela estando associada a temas contraditórios, detectáveis tanto na realidade social norte-americana quanto britânica, nomeadamente: a hegemonia de certas classes sociais, o racismo e a questão da assimetria de poder entre gêneros (mulheres e homens). Tal combinação desencadearia diferentes conflitos, já que as dissonâncias por ela produzidas, estruturadas na atividade da segurança pública, resultariam em práticas de exploração dos excluídos, mercê da utilização do poder dos agentes da lei e da ordem para manutenção de um suposto equilíbrio, impossível de ser alcançado entre desiguais. Paradoxalmente, tal estado de coisas coexiste com os paradigmas de igualdade de oportunidade e acesso à justiça. O segundo aspecto seria a própria estrutura das sociedades democráticas anglo-americanas, já que nelas o acesso da polícia ao espaço privado é consideravelmente restrito. O terceiro aspecto sócio-organizacional, pouco integrado aos estudos da cultura policial, seria o fato da moderna estrutura da polícia anglo-americana ter evoluído para produzir feições organizacionais específicas e carreiras técnico-profissionais (MANNING, 1983). Tais características englobariam critérios bastante amplos de recrutamento (função inclusive do princípio da “ação afirmativa”, traduzido em quotas de grupos raciais e de gênero), estrutura organizacional piramidal, hierarquia organizacional de pouca verticalidade (poucos níveis hierárquicos), grande mobilidade horizontal e pouca mobilidade vertical. Além disso, as características idiossincráticas da ocupação policial, em sua expressão toda própria, precisariam ser mais e melhor identificadas e consideradas no contexto da cultura respectiva.

Cultura Ocupacional Anglo-Americana:

Produtos

De acordo com MANNING, a cultura ocupacional dos agentes da segurança pública se constitui a partir de um conjunto de tarefas repetidas e tornadas rotineiras em vários graus, e de uma tecnologia, variável e indireta em seus efeitos. Ela é mediada pela estrutura organizacional, produzindo um conjunto de atitudes e uma estrutura explanatória de crenças (ideologia). As tarefas do policiamento são incertas, variadas, fora do comum, imprevisíveis em sua aparência, duração, conteúdo e conseqüências. São também carregadas de desordem potencial. O policial é dependente de outros policiais para obter apoio, aconselhamento, treinamento, conhecimento da atividade fim, proteção no caso de ameaças de fontes internas e externas, e até mesmo isolamento contra o público e perigos ocasionais.

A ocupação policial enfatiza a autonomia, tanto com respeito ao processo decisório individual, quanto ao que é chamado de “discricionariedade”. Também enfatiza a relação com o público que o policial serve e controla (policiais normalmente passam por experiências antagônicas em relação ao público), sublinhando uma rígida autoridade plasmada na estrutura paramilitar das organizações policiais.

Finalmente, MANNING também aponta que a cultura ocupacional torna saliente a exibição, criação e manutenção da figura da autoridade. O tema da fonte de autoridade tem 20

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múltiplas expressões, na medida em que ela deriva do Estado, da moralidade pública das classes dominantes e da própria lei.

Conclusão

A cultura ocupacional policial em sociedades anglo-americanas é produto da estrutura social e da evolução daquelas próprias organizações, o que parece também aplicável a outros países, o Brasil inclusive. Como em diferentes atividades ocupacionais, a organização da atividade policial engloba um conjunto de características simbólicas. Elas podem ser de natureza paramilitar, conforme fica detectável nas atitudes e uniformes próprios de militares e que também são envergados por policiais. Mas também podem ser de natureza estritamente civil. Neste último caso, a característica civil fica patente quando agentes da segurança pública, ainda em nível hierárquico inicial, pela própria natureza do serviço, inúmeras vezes precisam atuar e tomar decisões autonomamente (ao reverso da realidade estritamente militar) com tais ações e decisões produzindo grande impacto sobre indivíduos, a comunidade e a própria instituição policial. Os temas característicos da cultura ocupacional policial—dependência, incerteza, autonomia e autoridade—são encontrados nas duas faces organizacionais, a do policial e a do gestor. No caso brasileiro, por exemplo, o tema da incerteza já pode ser vislumbrado até mesmo no ônus que representa portar uma cédula de identidade policial ou, levado a um extremo, o de apenas trajar publicamente os uniformes respectivos, hoje sério fator de risco para a integridade física do profissional de segurança pública em algumas cidades do país. Também no Brasil, o mérito ou demérito da gestão da segurança pública representa atualmente um fator de incerteza, vis-à-vis o processo político-eleitoral, não só no âmbito dos entes federativos, como também do próprio Governo Federal.

O mundo social inclui muito mais do que uma cultura ocupacional específica. Ele engloba também a cultura maior, bem como o significado do trabalho em geral, aí incluídos os tipos de comprometimento e de adesão à cultura ocupacional. Isso inclui meta-temas18 que marcam e enfatizam uma ou mais características de uma cultura ocupacional no grande contexto da sociedade como um todo. Que dizer, por exemplo, do “meta-tema da autoridade”, parte essencial da cultura do agente da segurança pública, mas também alvo de forte questionamento político, genericamente considerando a questão da autoridade, mormente em sociedades historicamente marcadas pelo autoritarismo?

i Tradução livre: PELTO, Pertt, SPINDLER, George. El estúdio de la antropologia. México: Unión Tipográfica Interamericana, 1967. p.4.
ii Tradução livre: MANNING, Peter. Occupational Culture. In: Bailey, William (Ed.). The enciclopedia of police science. New York & London: Garland Publishing, Inc, 1995. p.472-475.

18
ii Meta-tema: reflexão crítica sobre um tema, ou “tema do tema”.

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iii Tradução livre: Organizations in Society. What is Sociology. Dartmouth College. http://www.dartmouth.edu/~socy27
Acessado em 20 de maio de 2004.
iv FERREIRA, Delson. Manual de Sociologia: dos clássicos à sociedade da Informação. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p. 32.
v Tradução livre: MANNING, Peter. Occupational Culture. In: Bailey, William (Ed.). The enciclopedia of police science. New York & London: Garland Publishing, Inc, 1995. p.472-475.
vi Tradução livre: MANNING, Peter. Occupational Culture. In: Bailey, William (Ed.). The enciclopedia of police science. New York & London: Garland Publishing, Inc, 1995. p. 472.
vii MARCONI, Marina, NEVES PRESOTTO, Zélia. Antropologia: uma introdução. São Paulo: Editora Atlas, 2001. p. 42.
viii FERREIRA, Delson. Manual de Sociologia: dos clássicos à sociedade da Informação. São Paulo: Editora Atlas, 2003. p.28.
ix Tradução livre: Britannica (URLb) “Frederick Taylor”. Encyclopaedia Britannica Online, Britannica.com. http://www.britannica.com/bcom/eb/article/7/0,5716,73317+1+71464,00.html
x FAYOL, Henry. Administração Industrial e Geral. São Paulo: Editora Atlas, 1950.
xi DEMING. W.E. Qualidade: a revolução da administração. Rio de Janeiro: Marques-Saraiva, 1990.
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xiii Tradução livre: MANNING, Peter. Occupational Culture. In: Bailey, William (Ed.). The enciclopedia of police science. New York & London: Garland Publishing, Inc, 1995. p.472.
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