27 de nov. de 2010

A escalada do crime organizado e o esfacelamento do Estado (Revisitando um texto de 2002 em 2010)

fonte da imagem: http://www.paulomarquesnoticias.com/2010/06/traficantes-presos-usavam-rotas.html

A escalada do crime organizado e o esfacelamento do Estado

Por George Felipe de Lima Dantas
4 de novembro de 2002

A segurança pública do Brasil passa por uma crise sem precedentes. As cidades do Rio de Janeiro e São Paulo são a "vitrine" disso. Nelas, a criminalidade hoje abertamente "em enfrentamento contra o Estado", dá mostras de uma situação sem precedentes na história do país: guerra aberta contra o poder constituído, processo que inclui até mesmo a execução de policiais e ataques contra instalações físicas dos órgãos de segurança pública.

Juliet Berg, em dissertação apresentada em 1998 perante o Instituto de Criminologia da Universidade de Cape Town, àfrica do Sul, cita a visão de crime organizado de Sydney Mufamadi, Ministro da Segurança Pública daquele país:

"o crime organizado passou a ser, individualmente, a maior ameaça global desde o final da Guerra Fria".

Vale ressaltar que o Brasil, juntamente com a África do Sul, está hoje entre os países mais violentos do mundo, segundo estatísticas recentemente publicadas pela ONU em seu "Sexto Relatório Global sobre Crime e Justiça"...

Também é Berg que aponta que o crime organizado, dado sua natureza complexa e o fato de ser, nos moldes atuais, fenômeno social ainda relativamente novo, carece de ser melhor entendido por organizações dentro e fora do aparato estatal (instituições acadêmicas, de análise política e da sociedade civil em geral). Parece semelhante ao que se passa hoje no Brasil o cenário retratado pela pesquisadora, quando afirma, referindo a situação atual sul-africana, que a polícia tenha um papel importante no fenômeno, principalmente em sua eventual participação nas empreitadas de organizações criminosas, ou mesmo passividade com que as tolera. Segundo Berg, isso possibilita que o crime organizado passe a atuar num ambiente livre de riscos, demonstrando pouco ou nenhum receio de ser infiltrado e conseqüentemente reprimido pelas forças policiais.

Parece que não seja necessário um "comprometimento moral majoritário" dos prepostos policiais do Estado para que o crime organizado adquira maior significação, da mesma forma que a corrupção em geral pode contaminar o "espírito nacional" a partir de alguns poucos casos seguidos de corrupção de representantes dos Poderes da República, sem que com isso possa ser feita "tábula rasa" da integridade da maioria dos membros dos três poderes constituídos...

Uma das dificuldades conceituais apontadas por Berg no trato do fenômeno do crime organizado, é o fato de que não existam ainda definições universais do seu preciso significado. A maioria das definições estariam baseadas em determinações estruturais de natureza específica, não sendo possível, portanto, definir genericamente o caráter "corporativo" de que o crime se reveste em diferentes países. Por isso mesmo, Juliet recorre ao que a Unidade de Crime Organizado da Interpol estabeleceu como definição do crime organizado:

"É qualquer grupo de criminosos que, tendo estrutura corporativa, estabeleça como objetivo básico a obtenção de recursos financeiros e poder através de atividades ilegais, freqüentemente recorrendo, para tanto, ao medo e intimidação de terceiros."

Na situação brasileira, especificamente, parece que o sistema policial da mostras de uma dupla vulnerabilidade, talvez não exatamente o caso da África do Sul. No Brasil, a par da existência histórica de uma "banda podre" no aparato policial do Estado, cuja expressão mais crônica poderia ser caracterizada no convívio, politicamente induzido, senão mesmo imposto, de polícias com a ilicitude, caso clássico do Estado do Rio de Janeiro no que se refere à contravenção do chamado "jogo do bicho". Some-se a isso a profunda desmoralização e conseqüente frustração, de uma claramente majoritária "banda não-podre". Tal acontece na medida em que policiais reconhecidamente íntegros passaram a ser sistematicamente execrados por representantes do Poder Público que instrumentalizam sua ação política conjuntural tergiversando quanto à legitimidade da ação policial realizada dentro dos limites estritos da lei.

Exemplos recentes disso seguem ecoando do Rio Grande do Sul, tanto no que tange a polícia judiciária quanto sua homóloga ostensiva, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Já no Estado de São Paulo, especificamente, é digna de nota a atitude dos governos estadual e federal, convocando os trabalhos do Departamento de Polícia Federal quando da investigação do seqüestro seguido de morte do Prefeito Celso Daniel de Santo André, medida política que desgasta a Polícia Civil do Estado de São Paulo e potencializa a arrogância da criminalidade local.

Existe uma verdadeira "anomia na gestão da segurança pública", hoje instalada no Brasil tanto ao nível federal quanto estadual, a primeira optando por investir apenas em recursos materiais (mais do de sempre...), ao invés de liderar o setor num salto qualitativo de natureza técnico-científica, enquanto a segunda pela prática já habitual de buscar fazer uma "política policial oportunista". Talvez seja interessante revisitar o texto de Juliet Berg, ao mapear a escalada do crime organizado e o conseqüente esfacelamento progressivo do Estado, situação hoje claramente instalada em um dos países vizinhos ao Brasil e para qual o Brasil parece marchar perigosamente.

1. Em um primeiro estágio, o Estado passaria por uma situação de "confrontação" em relação ao crime organizado, empregando métodos policiais para destrui-lo, numa tentativa de total erradicação das ilicitudes por ele praticadas.

2. Já num estágio seguinte, rotulado por Berg como sendo de "aquiescência relutante", face a incapacidade de adoção de uma estratégia de confrontação bem sucedida com o crime organizado, o Estado seria forçado a aceitar a prevalência de atividades ilícitas daquelas organizações em seu território nacional.

3. Em um terceiro momento, apontado pela autora como de "conivência tácita", já estaria instalado um processo de conluio dos sindicatos do crime com estruturas formais do Estado, a despeito da existência, ainda, de algum poder de confrontação e repressão. Nessa instância, seria eleita pelo Estado a opção de tirar proveito das operações ilícitas dos sindicatos do crime, na medida em que beneficiassem a economia, a sociedade, ou mesmo os funcionários da segurança pública eles próprios. Políticas de segurança pública, em países nessa circunstância, incluiriam uma "denunciação simbólica" do crime organizado, em lugar da adoção de medidas concretas do seu combate e erradicação, mascarando a passividade do seu sistema de justiça criminal (polícias, Ministério Público e Judiciário).

4. O quarto estágio seria o de "encorajamento ativo", circunstância em que altos membros do Estado, beneficiários diretos das atividades ilícitas do crime organizado, passariam a prevenir ou mesmo sabotar estratégias de contenção, já que as mesmas iriam de encontro aos benefícios por eles auferidos. Tal situação está relacionada a um grau específico de corrupção interna das estruturas estatais, fruto de esforços especialmente desenvolvidos nesse sentido por verdadeiros "lobistas" do crime organizado.

5. Num momento final, dar-se-ia o "conluio", grau mais alto de envolvimento do Estado com o crime organizado. Em tal estágio, o Estado estaria completamente envolvido com grupos criminosos, em uma verdadeira relação simbiótica. A estrutura estatal passaria a ter total parceria nas atividades do crime organizado, com seus representantes trabalhando diretamente com os sindicatos do crime. Segundo Berg, o conluio será tão mais aberto quanto maior seja o grau de subdesenvolvimento do país, já que Estados industrializados ou pós-industrializados costumam ser menos abertos em eventual conluio com o crime organizado, vis-à-vis países pobres que dependem mais intensamente da exportação de mercadorias ilegais.

Interessante notar, nesse texto tão contemporâneo de Juliet Berg, a observação de que o nível de intensidade do crime organizado envolve necessariamente uma conexão contínua e simbiótica, não só entre os sindicatos do crime organizado e policiais, mas também, de maneira específica, com representantes da classe política nacional.

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