ESSÊNCIA E VALOR DA GESTÃO COMUNITÁRIA DA SEGURANÇA PÚBLICA
BRITO, C.E.T.
DANTAS, G.F.L.
MAGALHÃES, L.C.
PERSIJN, A.
- Junho de 2007 -
RESUMO
A “gestão comunitária da segurança pública”, tendência moderna da administração pública no Brasil e no mundo, consiste na retomada, de fato, de uma antiga acepção do termo “policiamento”, quando tal atividade não estaria necessariamente restrita à polícia, porquanto estendida também a outros componentes da comunidade (“um velho vinho em um frasco novo”). Tendo em conta tal paradigma histórico, existe hoje uma busca para o estabelecimento de parcerias entre o poder estatal, a sociedade civil e até mesmo o setor privado, no sentido do estabelecimento de medidas de prevenção do crime e da violência. Este artigo aborda a estrutura e componentes desse novo modelo de gestão, bem como a possibilidade da sua aplicação com sucesso pelos gestores da segurança pública brasileira.
PALAVRAS-CHAVE
Gestão Comunitária; Polícia Comunitária; Policiamento Comunitário e Segurança Pública.
1. INTRODUÇÃO
Homo homini lupus est é uma antiga frase ainda utilizada modernamente enquanto bordão clássico, da autoria de Platão (428-347AC). Ela consta da obra Asinaria daquele sempre atual filósofo grego. O significado literal da expressão é de que "o homem é o lobo do homem", sugerindo assim uma feição violenta inata da natureza humana. Igual conceito seria depois utilizado por Thomas Hobbes (1588-1679) em suas obras De Cive (1642) e Leviathan (1651). A mesma suposição do provérbio platônico encontra refúgio, milênios mais tarde, no que Reiner define como sendo o fetichismo policial – premissa ideológica segundo a qual a polícia é um pré-requisito necessário para a manutenção da ordem social, já que, sem ela, dado a natureza violenta do homem, o caos prevaleceria.
Em uma outra obra, de origem mais contemporânea, Mad Max (1979), filme bastante celebrado pelos entusiastas do moderno “cinema futurista de ação”, tem-se um clássico da glamourização da polícia em seu apelo ao “fetichismo policial” referido por Reiner. O filme retrata uma sociedade futurista em que a sobrevivência da própria civilização parece restar nas mãos da polícia, materializando a dicotomia mítica da confrontação entre o bem e o mal ou da dupla clássica do “mocinho e bandido”. O herói da obra, como soe acontecer em produções do gênero, é um policial. O imaginário coletivo, mais uma vez, fica marcado pela idéia de que o poder do Estado esteja intimamente identificado com uma suposta onipotência da polícia, talvez baluarte último da civilização em sua confrontação com a barbárie materializada pelo crime e pela violência.
A expressão polícia pode ser compreendida, institucionalmente, por um corpo de funcionários estatais autorizados a potencialmente aplicar a força no exercício de seus mandatos ou, conforme propõe Bittner , “um mecanismo para a distribuição da força coerciva não-negociável, empregada de acordo com os ditames de um entendimento intuitivo de exigências situacionais”. Ainda assim, o policiamento não deve ser interpretado como uma atividade exclusiva desse tipo de organização estatal especializada – a polícia – mas sim como um conjunto amplo de atividades político-sociais cuja finalidade precípua é a manutenção da lei e da ordem. A esse respeito, cabe inclusive a reflexão lingüística comparada (inglês e português) entre o que seja law enforcement (genericamente traduzível como “atividade policial”) e police (designação, também genérica, para qualquer instituição policial). Tal disjunção de significados nem sempre parecerá tão óbvia para o lusófono.
Destarte, apesar das duas expressões citadas deterem a mesma raiz etimológica, a expressão “policiamento” não se confunde com “polícia”. Esta última não detém universalmente o monopólio daquele serviço, posto que o “policiamento”, genericamente considerado, refere-se a um aspecto genérico do controle social, passível de ser exercido por uma pletora de organizações e iniciativas formais e informais. Com efeito, o policiamento é um reflexo de conflitos e contradições de um amplo contexto em que estão situadas a estrutura social e a economia política.
A polícia, diferentemente de todas as outras organizações de policiamento (caso, por exemplo, no Brasil, dos órgãos de fiscalização sanitária e do meio ambiente), se destaca em função de duas razões principais: primeiro, por ter acesso ao uso legítimo da força e, segundo, pelo fato de ela ser um serviço público permanente de atendimento de emergência, ao menos teoricamente, disponível para todos, em qualquer lugar, 24 horas por dia.
A legitimidade, permanência e universalidade dos potenciais clientes dos serviços da polícia, faz com que demandas sem precedentes possam ser feitas a ela, o que leva exatamente à perpetuação do chamado fetichismo policial. Esse tipo de crença, ou ideologia, a qual se reflete freqüentemente na própria cultura policial, tem o resultado perverso de fazer com que certas comunidades desconheçam ou deixem de valorizar outros meios de controle social (formais e informais). Isso promoveria a desvalorização, ou mesmo o esquecimento da existência de outros aspectos da estrutura social e da cultura, enquanto instrumentos para manutenção e reprodução da lei e da ordem. Aí deveriam estar também incluídas, e nem sempre estão, instituições tão importantes, porquanto instrumentais para o controle social, como é o caso da família, da escola, das instituições religiosas e de outras tantas instituições mais.
Nos primórdios da civilização ocidental, ou judaico-cristã, a manutenção e a reprodução da lei e da ordem cabiam aos próprios cidadãos. Somente com a fundação da Polícia Metropolitana de Londres, vulgarmente conhecida como “Scotland Yard” (1829), na alvorada do século XIX, é que surge uma primeira organização burocrática estatal responsável pela segurança pública em uma sociedade ocidental moderna. Isto sugere importantes evidências.
Primeiramente, é preciso ter em conta que, durante a maior parte da história, a segurança pública não apenas dependia, como também era, de fato, exercida pelas próprias comunidades. Na tradição britânica (conforme o Estatuto de Winchester de 1285), e de acordo com o direito costumeiro, o exercício do policiamento pela cidadania ficava materializado na expressão "hue and cry". Tal expressão, derivada do latim hutesium et clamor (pela percussão de instrumentos e pelo clamor público), representava um processo pelo qual o próprio povo e vítimas empreendiam a perseguição e conseqüente prisão do criminoso surpreendido ("flagrado") no cometimento de um delito. Desse modo, pode ser afirmado que as instituições policiais são tipicamente uma das últimas "invenções do Estado Moderno", em sua arquitetura política para a construção de mecanismos de controle social. As "patrulhas comunitárias", constituídas sob a égide da moderna "polícia comunitária", são, na verdade, “um velho vinho em um frasco novo”.
Disso tudo decorre uma extraordinária constatação. Em termos históricos, observa-se que o policiamento pode não ser realizado apenas pela polícia, ainda que o trabalho dela seja imprescindível para a manutenção e reprodução da lei e da ordem nas sociedades modernas. No mundo contemporâneo, entretanto, passou-se a entender que o trabalho policial (“da polícia...”) não deva ser conduzido sem uma estreita "colaboração organizada" da cidadania. A forma mais comum dessa organização da segurança pública, por intermédio da cidadania, dar-se-ia no seio da própria comunidade – daí a expressão gestão comunitária da segurança pública.
Assim, para fins didáticos, e com o intuito de evitar equívocos de interpretação, pode ser considerado que a expressão “policiamento comunitário” equivale a de “gestão comunitária da segurança pública”, tendo em vista que o policiamento, conforme já apontado, diz respeito ao controle social que pode ser realizado tanto pela sociedade civil quanto pelos órgãos estatais (ou combinação deles), nas questões de segurança inclusive. No entanto, será aqui utilizada a terminologia “polícia comunitária” para a específica atividade policial que busca aplicar os princípios da “gestão comunitária da segurança pública”. Um exemplo disso seria a determinação de patrulhamento em áreas fixas para favorecer um estreitamento dos laços sociais entre o agente e a comunidade, o que supostamente propiciaria uma maior efetividade do trabalho policial, devido à facilidade de acesso aos problemas da região.
2.1. UM BREVE HISTÓRICO SOBRE A GESTÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA
Aponta Garland que, nos Estados Unidos da América (EUA) e no Reino Unido (composto por Escócia, Inglaterra, Irlanda do Norte e País de Gales), a partir da década de 70 o controle da criminalidade estaria além da capacidade de efetiva aplicação do poder exclusivo do Estado, sob importantes e distintos aspectos. Observou-se, em tal contexto histórico, que as instituições de segurança pública ficaram progressivamente limitadas em suas capacidades, não podendo, sozinhas, prover todos os meios e serviços para manutenção da lei e da ordem. A razão disso, segundo o autor e seus críticos, pode ter sido, simplesmente, uma fadiga no sistema de justiça criminal, em face das naturais mudanças em curso na sociedade.
Ao passo que foram identificados determinados limites no poder estatal de controlar a criminalidade, foi percebida a existência de poderosos mecanismos de controle criminal que poderiam operar “fora” da ação do Estado ou de suas políticas públicas. Segundo Garland, o esforço para superar esses limites, primeiro pela via da reforma das instituições estatais e, subseqüentemente, através da mobilização e do fortalecimento de mecanismos sociais, tem sido a base das políticas públicas mais inovadoras do período recente na área de segurança. Nesse sentido, nota-se que uma solução recorrente para os problemas das limitações do Estado – em termos de segurança pública – tem sido deslocar o trabalho de controle do crime também para a comunidade.
Desde os anos 60, segundo um discurso político moderno, principalmente anglo-saxão, passou a ser propagado que as tarefas de segurança pública poderiam ser mais efetivas se fossem realizadas também fora das instituições estatais, nos chamados ambientes comunitários. Dentre os argumentos que embasam tal posicionamento, destacam-se: (i) a crítica às chamadas “instituições totais”, caso das polícias ; (ii) os perigos da exclusão de determinados grupos do encaminhamento de questões e soluções de problemas de segurança pública e; finalmente, (iii) a crença nos “poderes de cura” das relações comunitárias. Desde então, é possível evidenciar um rico conjunto de iniciativas de reformas que identificam a comunidade como o lócus apropriado para o controle do crime. Não à toa, a partir da década de 60 tem-se o desenvolvimento de um programa comunitário atrás do outro em diferentes países, tais como o das penas comunitárias, do orçamento participativo, da prevenção comunitária da violência, do lazer comunitário etc. A comunidade passa a tornar-se, portanto, uma solução generalista para um grande número de problemas de segurança pública.
Alguns dos desenvolvimentos comunitários da gestão, caso, por exemplo, do programa federal brasileiro intitulado "Saúde da Família", consistem em funcionários do Estado realizando atividades na comunidade, mas primordialmente sob os auspícios de organizações públicas. Entretanto, em que pese esta constatação, outras medidas passaram a engajar a comunidade de maneira ainda mais inovadora e radical. Tais medidas buscam responder às preocupações e recrutar ajuda de residentes e organizações do bairro. Duas delas, no campo específico da segurança pública são o policiamento comunitário e a prevenção comunitária da criminalidade. Dessa maneira, via de regra, tais medidas compreendem o apoio de agências, empresários e grupos comunitários às atividades de gestão da segurança pública, resultando no incremento dos esforços de controle social por parte destes mesmos atores sociais, alinhando-os com os próprios esforços das agências oficiais de controle social.
Assim, ao invés de abordar o crime da maneira tradicional, direta, via polícia, judiciário e sistema prisional, um novo tipo de abordagem promoveria uma espécie de “ação efetiva indireta”. Nela, as agências estatais ativariam os trabalhos dos atores não-estatais, tanto enquanto indivíduos quanto organizações. O resultado buscado seria uma rede de trabalho mais robusta de controle criminal (menos direcionada, menos formal), complementando e expandindo os controles formais existentes. Desta forma, ao contrário de imaginar que pudessem monopolizar o controle do crime, ou exercer seus poderes soberanos em completo desdém aos poderes de outros atores, as agências estatais passariam a importar-se e valorizar as demais forças potenciais de controle social. Nesse aspecto, tais agências estatais buscariam construir alianças amplas, recrutando os poderes gerenciais de atores privados. É exatamente essa a idéia de “formação de parcerias”, proposta pela “gestão comunitária da segurança pública”.
Não obstante, as parcerias comunitárias têm dois objetivos precípuos. Primeiro, buscam pulverizar a responsabilidade pelo controle do crime entre agências, organizações e indivíduos que operam fora do Estado. Segundo, pretendem persuadir tais atores a agir apropriadamente. Todavia, a tarefa de responsabilização, implícita em tal processo, tem encontrado grandes dificuldades. Uma delas é a anterior e tradicional divisão de trabalho no contexto do sistema de justiça criminal. A outra é a premissa historicamente estabelecida de que o Estado é sempre, e exclusivamente, a autoridade responsável pelo controle do crime, ou seja, reforçando o fetichismo policial.
Sem dúvida, é difícil persuadir as organizações privadas a se responsabilizarem por aquilo que elas continuam a perceber como função pública. Contudo, trata-se de um desafio necessário. Pode-se afirmar, com firmeza, que essa redistribuição de tarefas de controle do crime é o novo e radical objetivo institucionalizado buscado pelo Estado moderno em relação à segurança pública. Tal “redistribuição do poder” é conduzida por meio da multiplicação do número de autoridades efetivas e da própria formação de alianças. Tal processo também pode ser compreendido como uma transferência "de cima para baixo" da autoridade (top-down) .
2.2. A SEGURANÇA PÚBLICA
O presente documento, ao tratar do "policiamento comunitário" ou da "gestão comunitária da segurança pública", lida essencialmente com um objeto pertinente à relação entre o Estado e o “Terceiro Setor” (que também é chamado de “Sociedade Civil” ou "Sociedade Organizada"). Entenda-se como segurança pública a condição ou situação, que incumbe ao Estado o dever de assegurar à nação, por intermédio do provimento de serviços prestados pelas instituições referidas no artigo 144 da Constituição Federal , nomeadamente: as diversas polícias, corpos de bombeiros militares e guardas municipais.
É importante ressaltar, contudo, que a segurança pública, além de ser um direito de todos os cidadãos, deve ser também considerada como uma responsabilidade também de todos eles, conforme apontado no texto constitucional supramencionado. Do ponto de vista da gestão comunitária, é fundamental o engajamento da comunidade junto aos órgãos estatais de segurança, a fim de otimizar a tomada de decisão em aspectos relacionados ao controle social e manutenção da ordem pública. Dessa maneira, é possível a formação de parcerias para a prevenção criminal, como por exemplo, entre uma associação de moradores e a polícia ostensiva local.
Não está disponível ainda na legislação infraconstitucional, entretanto, algo que trate especificamente do tema da segurança pública e do seu detalhamento e definições. Até esta data, o artigo 144 da Constituição Federal permanece sem ser regulamentado. Isto posto, é apenas possível entender o que seja o provimento da segurança pública utilizando a definição semântica da expressão "segurança", bem como visualizando seus órgãos de execução. A eles incumbe, essencial e diretamente, a tarefa de assegurar à nação um estado de coisas em que ela esteja protegida da vitimização, não só pelo crime e pela violência, como também pelos sinistros, acidentes e desastres. Isso implica visualizar o papel dos bombeiros militares na segurança pública, rompendo com a visão quase que intuitiva, ainda que equivocada, do papel exclusivo da polícia em tal setor.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, as instituições brasileiras da segurança pública incluem as polícias, os corpos de bombeiros e as guardas civis municipais. Elas seguem em processo de desenvolvimento e expansão, após uma trajetória histórica cujo último desdobramento formal coincide com sua estruturação constitucional, mercê daquela Carta Magna, ainda vigente nos dias atuais. Nos últimos dezenove anos, espaço de tempo decorrido desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, um dos desdobramentos de maior significação no tocante à segurança pública foi o estabelecimento de quase duas centenas de guardas civis municipais. Isso aponta a média de uma nova organização de segurança pública municipal sendo criada a cada mês.
É necessário ter em conta que existe uma tendência universal a discutir, para alguns até mesmo adotar sem maiores considerações, correspondente ao modelo de municipalização da gestão da segurança pública. Ao mesmo tempo, instituições estaduais (e do Distrito Federal) no Brasil, em movimento contrário, continuam detendo a função constitucional precípua de prover tais serviços, ao nível da totalidade territorial dos entes federativos, abarcando, portanto, a extensão territorial dos municípios. Ainda assim, a relevância política das comunidades, em sua materialização em bairros, como que espelha uma tendência contemporânea a valorizar estruturas político-sociais mínimas, cuja natureza tende a distanciar-se de um "Estado Total", grande, pesado e letárgico, quiçá com pouca ou nenhuma capacidade de rapidamente interpretar e/ou reinterpretar os anseios mais legítimos da cidadania. Talvez seja por isso mesmo que Bento Claro refere existir uma relação entre a "explosão de iniciativas nos campos referentes ao Terceiro Setor" e a "criação de uma cultura de co-responsabilidade política e social envolvendo o Estado e a Sociedade Civil".
Contextualizando globalmente a situação da segurança pública brasileira, em sua relação com o município, vale citar que os EUA contam com mais de 18 mil organizações policiais, das quais cerca de quinze mil pertencem ao chamado "poder local". São aproximadamente doze mil departamentos de polícia de condados e municípios e mais de três mil escritórios de xerifes. Já no Brasil, estão correntemente estabelecidas apenas 58 instituições policiais. Já as guardas civis municipais brasileiras, criadas desde 1988, somam mais de 100 instituições. Contudo, seria preciso alguns séculos para que todos os municípios brasileiros passassem a ter guardas municipais, mantido o ritmo atual da criação delas.
Buscar um modelo da relação entre a Gestão Comunitária da Segurança Pública em sua conexão com a Sociedade Organizada, implica identificar e explorar “casos de sucesso”. A análise desses exemplos pode levar a uma descoberta brasileira sobre suas possibilidades de utilização no país e avaliação da efetividade respectiva. Seria como que buscar um paradigma de bom funcionamento de novos sistemas de segurança pública para o Brasil, sob a inspiração de paradigmas estrangeiros, através de padrões e exemplos identificáveis no restante do mundo.
2.3. A GESTÃO COMUNITÁRIA DA SEGURANÇA PÚBLICA
2.3.1. Alguns conceitos sobre a gestão da segurança pública
É necessário, inicialmente, ao tratar de questões ligadas à gestão da segurança pública, definir o significado preciso de tal expressão. Considera-se, para tanto, que seu entendimento possa não ser tão intuitivo quanto parece. A expressão “gestão” está vinculada ao ato de gerir, gerência ou administração. Sua acepção latina remonta à expressão gestione. Ela é uma forma nominal do verbo "gerir", sinônimo de dirigir ou governar. De acordo com modernas teorias da administração pública, o direcionamento das atividades de gestão é marcado por uma ideologia política, tal qual sua própria ação.
Já a ideologia, enquanto instrumento de articulação filosófica das ações de gestão, pode ser entendida como um conjunto de idéias, pensamentos, doutrinas e visões-de-mundo de um indivíduo ou de um grupo, espécie de orientação geral para ações sociais e, principalmente, para empreendimentos políticos. Enquanto a noção de gestão remete para a de ideologia, esta última está relacionada com a política. Já a política pode ser entendida como a orientação ou atitude de um governo em relação a certos assuntos e problemas de interesse público, entre eles, suas políticas públicas, as de segurança inclusive.
Desta trama de conceitos, emerge finalmente o de política pública, espécie de artefato agregado da política com a gestão, designando especificamente certo tipo de orientação para a tomada de decisão em assuntos públicos, políticos ou coletivos. Ela também pode ser compreendida como um curso ou método de ação selecionado entre alternativas disponíveis e sob a luz de determinadas condições, com o objetivo de alimentar o processo decisório.
Decorre que a política pública seja referente a planos de alto nível que compreendem objetivos gerais e procedimentos mais amplamente definidos no âmbito de um órgão governamental. As “políticas” públicas são, portanto, um produto da atividade política. Elas podem ser percebidas, também, como um conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica de conflitos acerca de bens públicos. Desta forma, é possível conceber, ao examinar e analisar a questão da política de segurança pública, a existência de um "bem segurança", conforme já referiu especificamente a própria Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério da Justiça em seus documentos de comunicação social.
2.3.2. O terceiro setor e o capital social
Conforme já apontado, os termos “sociedade civil”, “sociedade organizada” e “terceiro setor” são equivalentes. Qualquer das três acepções refere-se ao espaço de ação coletiva não-coercitiva, cujo poder deriva de interesses, objetivos e valores comuns da sociedade. Na prática, as fronteiras entre o Estado, a Sociedade Civil e as Forças de Mercado são complexas. Tais fronteiras são, algumas vezes, até mesmo difíceis de perceber claramente.
A Sociedade Civil, usualmente, compreende uma diversidade de espaços, atores e formas de instituições, variáveis em grau de autonomia e poder. Teoricamente, as suas formas institucionais são diferenciadas das do Estado e das Forças de Mercado (esta última, podendo ser também chamada de “iniciativa privada”). Sendo assim, fazem parte da Sociedade Civil as associações civis, organizações filantrópicas, organizações não-governamentais (ONG) ligadas ao desenvolvimento, grupos comunitários, organizações de mulheres, grupos religiosos, associações profissionais, sindicatos, grupos de auto-ajuda, movimentos sociais, associações comerciais, grupos de ativistas etc. Portanto, tal sociedade organizada pode ser compreendida como uma “forma de capital”, enquanto bem econômico aplicável à produção ou, em outras palavras, uma “riqueza” capaz de produzir renda. Ela não é apenas fonte de produtos valiosos, é também uma riqueza especial, porquanto capaz de gerar mais produtos. Ao contrário do capital físico, esse “capital social” é durável e não se deprecia com o uso. Ao contrário, também, porquanto quanto mais é utilizado, mais valioso ele passa a ser. ¬
Tal idéia de Sociedade Organizada se contrapõe hoje ao fato de que os indivíduos estão cada vez mais desconectados da família, dos amigos, dos vizinhos e das variadas formas de estruturas sociais existentes no passado. Assim, o estoque de "capital social" das sociedades modernas tem sido reduzido drasticamente, empobrecendo a vida dos indivíduos e das próprias comunidades. Tal declínio seria o resultado das mudanças nas estruturas familiares, no mercado de trabalho e nos meios de comunicação de massa, entre outros.
Entende-se por capital social, em outras palavras, um bem público constituído por várias manifestações de arranjo social, tais como a confiança interpessoal, as normas de reciprocidade e as redes solidárias. Tais manifestações habilitariam os seus participantes a agir coletivamente de forma mais eficiente, na busca de objetivos e metas comuns. Assim, o capital social não apenas encorajaria a confiança recíproca, mas também promoveria a cooperação social, fortalecendo diferentes formas de vínculos, conexões e ligações sociais. Ademais, facilitaria também a comunicação entre indivíduos. Nesse sentido, Bourdieu define “capital social” como "(...) a soma dos recursos reais ou virtuais que indivíduos ou grupos de indivíduos adquirem, devido ao fato de possuírem redes duráveis de relacionamentos sociais mais ou menos institucionalizados de reconhecimento e conhecimento mútuos".
A importância do capital social para a harmonia e manutenção das sociedades humanas é tema basilar na Sociologia contemporânea. Alexis de Tocqueville , em sua obra-prima Democracia na América, identificou a relevância das numerosas associações civis para o desenvolvimento da recém-instituída democracia nos EUA do século XIX. Putnam , em igual sentido, argumenta que o capital social de uma determinada área de atividade humana está associado com o sucesso, ou a falência, de projetos coletivos de desenvolvimento. Assim, o capital social refere-se às características da organização social, em especial à confiança e normas e redes de relacionamentos que facilitam ações conjuntas dos atores sociais.
Se a sociedade organizada é um exemplo de capital social e, se este último é uma condição necessária para a manutenção da democracia e do mercado, mister considerar que a segurança pública não poss ser vista fora de tal contexto. Ela não pode ser interpretada como uma área de atividade político-social de interesse apenas da polícia. Em outras palavras, a segurança depende das contribuições da sociedade civil, sob pena de não atingir os seus objetivos de forma completa e adequada, tampouco de ser democrática. Assim, no tocante à segurança pública, o conceito de terceiro setor se aplica com todo vigor, pois a segurança do público tende a ser mais efetiva caso conte com a participação (não menos efetiva) da cidadania e da comunidade em geral. Deriva daí que a polícia poderá, igualmente, contribuir para que estes mesmos cidadãos e comunidades ajudem a si mesmos, resolvendo seus próprios problemas.
2.3.3. A polícia comunitária
Em poucas palavras, a polícia comunitária é a modalidade de trabalho policial preventivo e ostensivo correspondente ao exercício da função policial definida pelo compromisso inalienável com a construção social da paz e respeito aos direitos humanos. Equivale também a um aperfeiçoamento profissional, uma vez que implica mais qualificação e maior eficiência na provisão da segurança pública. Os exemplos brasileiros e internacionais são ricos em experiências bem sucedidas, nas quais decrescem as taxas de crimes e outras práticas violentas, enquanto cresce, na mesma proporção, a confiança popular na polícia. A memória da história recente ajuda a contextualizar a importância e o sentido desta nova metodologia de gestão.
Assim é que, a noção de "polícia comunitária" se estrutura essencialmente sobre um modelo "pró-ativo" do provimento de segurança pública. Suas ações são resultantes da formação de parcerias e programas construídos entre o Estado (polícia) e a Sociedade Organizada (em suas mais variadas expressões). A metodologia aqui denominada genericamente como “comunitária” recebe nomes diferentes, como “de proximidade” ou “interativa”, conforme os países e as tradições em que ela seja aplicada. Mas o que realmente importa, mais que o nome que lhe seja atribuído, é seu conteúdo e valores. Esses têm, felizmente, atravessado fronteiras e se expandido no rastro da extensão da consciência cívica democrática e dos direitos de cidadania das mais variadas nações.
De acordo com a Associação Internacional dos Chefes de Polícia (International Association of Chiefs of Police - IACP), as formas e/ou estratégias de provimento do “policiamento comunitário” podem ser classificadas em seis modelos ou estruturas. O primeiro, intitulado modelo unitário, prevê a existência de um agente de polícia dedicado exclusivamente ao contato com a comunidade, considerando uma unidade policial pré-determinada. Este tipo de modelo é normalmente praticado em pequenas unidades policiais. No modelo especializado há dois ou mais policiais dedicados ao “policiamento comunitário” e à solução de problemas na área de atuação de cada unidade policial. O terceiro modelo, da força mista, compreende a designação de um “policial comunitário” para cada área servida por patrulhamento policial (zona, setor, área). De acordo com o modelo temporal, os “policiais comunitários” são designados para trabalho comunitário específico, sempre que esse tipo de serviço se fizer necessário. Tais policiais não se separam da função de patrulhamento ostensivo e desempenham tais funções concomitantemente às de polícia judiciária, no sentido da formação de parecerias e busca de “resolução de problemas”. O quinto modelo, definido como policiamento comunitário total, freqüentemente chamado de modelo generalista, pressupõe que todos os policiais da unidade policial considerada estejam diretamente envolvidos ou apoiando a filosofia do “policiamento comunitário”. Por último, o modelo geográfico reflete diferenças de filosofia de trabalho entre os comandos de área e de vigilância temporal (plantão), cada qual com seu respectivo supervisor.
2.3.4. Alguns princípios gerais da gestão comunitária da segurança pública
Ainda é um ponto bastante controvertido o quê exatamente a gestão comunitária da segurança pública poderia englobar. Ainda assim, os princípios gerais anunciados por Goldstein e Trojanowicz e Bucqueroux são amplamente aceitos como as bases do “policiamento comunitário”. As duas características dominantes de tais princípios são: (i) Ênfase na solução de problemas, também conhecida como “policiamento orientado por problemas” ou POP; e (ii) Envolvimento comunitário e construção de parcerias entre a polícia, a cidadania, outros órgãos governamentais e organizações não-governamentais .
2.3.4.1. Ênfase na solução de problemas, também conhecida como “policiamento orientado por problemas”ou POP
Com referência à primeira característica, vale avocar as idéias de Herman Goldstein, precursor da análise e conceituação do “policiamento orientado por problemas”. O autor propõe a desagregação das categorias criminais tradicionais , de modo a permitir a identificação e comparação de causas comuns que relacionem eventos aparentemente não compatíveis entre si. A título de ilustração, na legislação americana, um “incêndio criminoso” é definido legalmente como “ação ilegal de atear fogo na propriedade de outrem”. No entanto, nesta única tipologia criminal podem ser encontradas múltiplas motivações ou etiologias: vingança, piromania, intimidação, fraude, tentativa de ocultação de outro crime ou até mesmo uma brincadeira de crianças com instrumentos causadores de faíscas (fósforos, por exemplo). Cada razão ou motivo assinalado, segundo Goldstein, demanda respostas fundamentalmente diferentes por parte da polícia, uma vez que a investigação e as técnicas de prevenção efetivas contra uma forma específica de incêndio criminoso poderão ser completamente ineficazes contra as outras formas de consecução deste mesmo tipo de delito.
Conforme apontam Eck e Spelman , a definição operacional padrão de “problema” é “um grupo de incidentes (ocorrências) havidas em uma comunidade, os quais são similares em uma ou mais maneiras, razão de preocupação para a polícia e/ou para o público” . Em tal contexto, aqueles autores afirmam que a “solução de problemas” é formada por quatro componentes: sondagem, análise, resposta e avaliação (SARA – Scanning, Analysis, Response and Assessment).
Esses quatro componentes tornaram a “solução de problemas” um perfil operacional clássico do “policiamento comunitário”, já que o sistema SARA proporcionava aos policiais algo que eles poderiam de fato fazer – uma “polícia comunitária”. De forma sucinta, o mecanismo SARA funciona da seguinte maneira: (i) uma sondagem é feita pelo policial em patrulhamento ou durante alguma outra atividade específica, ou por meio da leitura dos boletins de ocorrência e chamadas de serviço (telefone 190 no Brasil), com o objetivo de identificar um problema tal qual definido acima; (ii) é procedida uma análise é um exame dos incidentes (ocorrências) e fatores antecedentes que resultaram na repetição dos chamados de socorro e de ocorrências similares havidas anteriormente; (iii) é dada uma “resposta”, em reação aos fatores causais identificados na análise, por meio de ações cuidadosamente direcionadas às causas já pré-determinadas das ocorrências similares; (iv) é procedida uma “avaliação”, enquanto reexame do conjunto original de condições e fatores que causaram o problema, com vistas à identificação de mudanças resultantes da ação de resposta, de efeitos colaterais não previstos e da solução atual do problema propriamente dito.
2.3.4.2. Envolvimento comunitário e construção de parcerias entre a polícia, os cidadãos, outros órgãos governamentais e organizações não-governamentais
A respeito da segunda característica do “policiamento comunitário”, Feins enfatiza o valor da formação e manutenção das parcerias colaborativas de trabalho entre a comunidade e a polícia, com vistas à prevenção e controle da criminalidade. Essa característica implica na diferenciação de todos os demais modelos propostos nas reformas policiais anteriormente ocorridas, por exemplo, nos EUA . Qualquer revisão bibliográfica sobre as práticas e experiências das agências policiais pioneiras na adoção dos pressupostos do “policiamento comunitário” demonstra a importância de tal característica.
Atualmente, a “formação de parcerias” está no centro, não somente da gestão comunitária da segurança pública, como também de várias estratégias governamentais para solução de problemas sociais. Tais estratégias têm em conta a proliferação de conselhos comunitários de várias naturezas, tais como: orçamento participativo, conselhos comunitários de educação e de saúde, conselhos tutelares, dentre outros. Chaiken e Karchmer acrescentam: “(...) nos últimos anos, as parcerias têm sido um aspecto crítico dos esforços multijurisdicionais do policiamento de drogas”. Os teóricos dessa noção afirmam que, na essência das parcerias está a crença de que a prevenção e a redução do crime e da desordem requerem um esforço coordenado e concentrado de indivíduos, comunidades e instituições afetadas. Uma vez que o crime pode ter múltiplas causas, infere-se que as soluções devam ser igualmente multifacetadas e, assim sendo, não possam ser encontradas somente pela polícia.
A natureza das parcerias existentes nas iniciativas de “policiamento comunitário” pode ser identificada como um gradiente com duas extremidades . De um lado, as parcerias que envolvem colaboração em todas as fases do trabalho entre polícia, residentes da comunidade, organizações, igrejas e outras instituições da segurança pública. Pelo outro lado, aquelas parcerias que são formadas para o mero envolvimento dessas partes. A diferença fundamental entre essas duas categorias refere-se aos papéis desempenhados pelos atores centrais. No esforço colaborativo, todos os participantes trabalham como parceiros no estabelecimento de prioridades, na definição dos problemas, no desenvolvimento e implementação de respostas e na mensuração dos efeitos e da performance da atividade de segurança pública (avaliação). As parcerias que prevêem apenas o envolvimento dos demais atores tendem a ser dirigidas pela polícia, sendo elas mais tradicionais em sua natureza e mais estreitas em seu escopo .
Estudo realizado por Brito , a partir dos projetos de policiamento comunitário fomentados pelo Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) entre 2000 e 2001, identificou que a natureza das parcerias no Brasil é caracterizada pelos seguintes aspectos: (i) Baixíssimo grau de colaboração; (ii) Grau mediano de envolvimento e (iii) Com a peculiaridade de que a polícia praticamente detenha o “monopólio” da iniciativa da formação das parcerias no âmbito do policiamento comunitário.
Quanto ao tipo, as parcerias podem ser classificadas em dois amplos conjuntos. O primeiro compreenderia as parcerias de promoção de segurança lastradas na criação de forças-tarefas entre polícias estaduais, polícias federais, agentes do sistema penitenciário, promotores de justiça e juizes. Nesse caso, a finalidade seria de proporcionar recursos adicionais de repressão contra a criminalidade em resposta/resolução de um problema específico. O segundo tipo de parceria envolveria as chamadas parcerias programáticas ou táticas, nas quais a polícia e grupos não-policiais (não-governamentais) unir-se-iam para o desenvolvimento de medidas especializadas de prevenção criminal.
As parcerias de promoção tendem a surgir por força dos casos de criminalidade organizada cujo enfrentamento envolve a articulação de vários poderes administrativos. As parcerias programáticas ou táticas tendem a se manifestar em resposta aos casos de criminalidade de massa, quando há forte apelo para medidas preventivas. Brito identifica, no Brasil, uma preponderância das parcerias do tipo "Força-Tarefa", com forte caráter federal. Talvez a recentemente formada “Força Nacional” seja emblemática disso... Em tais casos, os principais parceiros seriam as próprias e diversas organizações policiais. Assim, observa-se uma ausência quase completa de outras organizações, sejam elas de caráter não-governamental ou privado.
2.3.5. Algumas considerações adicionais sobre o policiamento comunitário
Conveniente se torna atentar para o fato de que, assim como a gestão comunitária da segurança pública praticada hoje, o “policiamento orientado por problemas” enfatizava a identificação de recursos e parcerias externas. Desse modo, uma resposta coordenada de todos os níveis de governo e de todos os segmentos da comunidade seria proporcionada para os problemas referentes à segurança e ordem pública. Todavia, o “policiamento orientado por problemas” não implicaria, necessariamente, em uma mudança fundamental nas relações com a comunidade, o que certamente as políticas públicas recentes, baseadas no “policiamento comunitário”, advogam. A solução dos problemas poderia ser (e freqüentemente é) conduzida como um exercício exclusivo da polícia, recorrendo apenas modestamente à comunidade – participação essa habitualmente controlada e coordenada pela própria polícia.
Mesmo quando reconhecido como um objetivo factível, o “policiamento comunitário” encontrava – e ainda encontra – resistências no próprio meio policial. Isso acontece, usualmente, por demandar ações complexas de um efetivo de recursos humanos quase sempre utilizado no seu limite quantitativo. Ademais, algumas obras acadêmicas sobre o assunto apontam que o policiamento comunitário fornece pouquíssimo conhecimento novo acerca do sistema de segurança pública e seus agentes. Kloklars , por exemplo, o descreveu como “a última das relativamente longas tradições de circunlóquios que visam a ocultação, mistificação e legítima distribuição policial da força coercitiva não-negociável”. Ao contrário disso, uma outra corrente de estudiosos considera o a gestão comunitária não somente uma estratégia viável, como também “a única forma de policiamento disponível para qualquer instituição de segurança pública que pretenda melhorar suas operações policiais, sua administração e suas relações com o público” .
Apesar da divergência de pontos de vista, alguns importantes administradores policiais admitem que a gestão comunitária da segurança teria sido uma importante fonte propulsora do desenvolvimento do serviço policial verificado no início dos anos 90. A partir do reconhecimento da necessidade de mais recursos para a polícia, por força do aumento da criminalidade e da preocupação pública com o tema, os governantes locais também já teriam concluído que o simples aumento do número de policiais para repressão da criminalidade, via aprisionamento de delinqüentes, não resolveria mais, sozinho, os problemas de segurança .
Uma nova abordagem fazia-se necessária, urgentemente, na década de 90, para tornar as comunidades menos vulneráveis ao crime e desordem. O “policiamento comunitário” parecia atender justamente essa necessidade . Em pesquisa realizada por Trojanowicz em 1994 , 42 por cento de todos os departamentos de polícia norte-americanos servindo jurisdições com mais de 50.000 habitantes afirmaram ter adotado “alguma forma” de policiamento comunitário nos últimos quinze anos. A administração de importantes cidades daquele país, tais como Filadélfia, Milwaukee e Los Angeles reconheceram a importância dessa abordagem e a instituíram. Assim, a gestão comunitária foi o foco de reforma da segurança pública no calor de ocorrências que exacerbaram as tensões entre grandes departamentos de polícia norte-americanos, especificamente na sua relação com comunidades minoritárias locais (afro-americanos, hispânicos e estrangeiros negros), principalmente.
3. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
O “fetichismo policial” – lamentavelmente tão enraizado na sociedade e cultura brasileira – tem promovido, historicamente, o enfraquecimento cada vez mais prevalente e deletério dos controles sociais informais. O resultado desse enfraquecimento é preocupante. Ao passo que os controles sociais informais – família, organizações comunitárias e associações civis – tornam-se cada vez mais ignorados, os controles sociais formais – leis, polícias e outras expressões organizações estatais – cada vez menos conseguem satisfazer necessidades demandadas por uma sociedade complexa e em constante mudança.
A solução para esse impasse pode estar na própria mudança de orientação filosófica e cultura das instituições policiais brasileiras. Quem sabe, o enfraquecimento dos controles sociais informais possa ser revertido exatamente por uma mudança cultural no âmbito da principal organização de controle formal, qual seja, a polícia. - Mas pode a cultura policial mudar? - Muito provavelmente, sim. Foster , por exemplo, afirma que a mudança pode ocorrer por meio de treinamento e gestão diferenciados, instituídos por uma política pública específica. Por seu turno, acrescenta Chan , as mudanças buscadas por essa política jamais acarretarão mudanças na prática policial, a menos que se mude o conhecimento cultural e o clima sócio-político em que a polícia opera. Schein defende que cultura policial e a liderança andam de mãos dadas. Assim, uma liderança forte permite que mudanças organizacionais aconteçam, visando provocar melhores práticas e resultados no âmbito das atividades policiais.
No caso do Brasil, são urgentes e necessárias as mudanças na cultura policial. O atual modelo policial brasileiro – reativo por natureza, está orientado para a ocorrência (o “fato consumado”...) – ele poderia evoluir em direção a um modelo pró-ativo e preventivo, quiçá sob a forma de algum tipo ou espécie de policiamento comunitário, devidamente adaptado às peculiaridades locais e nacionais. Tal modelo refere-se, essencialmente, à estratégia organizacional fundamentada na parceria entre a comunidade e a instituição policial local, tendo como objetivo incluir a participação da sociedade civil no planejamento e acompanhamento do policiamento, com vistas à solução de problemas identificados pela própria comunidade.
Um aspecto positivo dos modelos pró-ativos, a exemplo do policiamento comunitário, reside no fato de que eles fomentam os controles sociais informais. Em especial, o respeito aos valores comunitários, às atitudes pró-sociais e aos princípios familiares fundamentados na solidariedade, na confiança e na integridade. Tais modelos preventivos enfatizam crescentemente a observância das formas alternativas e não-públicas de policiamento, ora fornecidas pelo terceiro setor (conselhos comunitários de segurança pública e outros sistemas congêneres ao anglo-saxão neighbourhood watch, por exemplo), ora pelo próprio setor privado (o mercado, sob a forma de esquemas privados de vigilância e suas variantes tecnológicas). Os modelos pró-ativos, destarte, são bastante compatíveis com a adoção de modalidades não-humanas ou tecnológicas de segurança, a exemplo, as câmeras de vigilância e monitoramento (Circuitos Fechados de Televisão -- CFTV) e os alarmes de presença.
Enfim, a superação do “fetichismo policial”, no Brasil, depende em grande medida de mudanças culturais na polícia, ainda que a cultura policial não deva ser, absolutamente, a possível e necessária fonte dos flagelos da segurança pública nacional. Todavia, mudanças culturais, especialmente aquelas capazes de apoiar os aspectos positivos do trabalho policial, são certamente imprescindíveis. Isso implicaria no aperfeiçoamento dos respectivos serviços, bem como poderia reduzir de alguma forma e medida a criminalidade e a violência, diminuindo a sensação de insegurança o que, certamente contribuiria para o desenvolvimento sócio-econômico do país. Oportunamente, bem afirma Soares : “a polícia é a manifestação mais tangível do Estado (...). O policial uniformizado na esquina de um bairro (...) é a forma de presença mais visível do Estado e de suas ‘instituições’”.